A escada até a medalha

A Medalha Fields é, sem dúvida, uma glória para a matemática – e a ciência – no Brasil. E o nome de Artur Ávila e da instituição que o formou, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no Rio de Janeiro (RJ), estarão para sempre inscritos na história deste país.

Eis, portanto, a chance de lembrar algo de que muitos se esquecem ou acham que não vale a pena lembrar: a escada que elevou esse jovem carioca a tamanho prestígio internacional começou a ser edificada há muito tempo. E alguns de seus degraus foram esculpidos e cimentados por nomes como Joaquim Gomes de Souza (1829-1864); Otto de Alencar (1874-1912); Theodoro Ramos (1895-1935); e Manuel Amoroso Costa (1885-1928).

Haverá aqueles que dirão que nenhum deles deixou “contribuição significativa” para a matemática deste país. Quem o fizer estará meio certo e meio equivocado, pois isso depende do que se entende pela expressão acima entre aspas.

“Contribuição” seria dedicar-se à pesquisa em matemática em um ambiente intelectual inóspito à ciência e totalmente isolado da Europa, como fez Souzinha? Seria combater o positivismo e atacar os erros da matemática do idealizador dessa doutrina filosófica, o francês Auguste Comte (1798-1857), em época na qual essa corrente de pensamento era endeusada pela maioria dos intelectuais brasileiros, como fez Alencar? Ou trazer a matemática feita no Brasil para o século 20, como fez, em sua tese de doutorado, Ramos, que, por sinal, também foi o introdutor da mecânica quântica no país? Ou introduzir por aqui a teoria da relatividade e sua complexa matemática (cálculo tensorial, geometria não euclidiana etc.), como fez Amoroso Costa no início da década de 1920?

Haverá quem diga que a citação de tais nomes aqui é só uma forma de “fazer justiça” a eles. Pergunta-se: haveria algo mais nobre do que fazer justiça? 

Seria de se estranhar (muito) que algum deles demonstrasse um teorema dificílimo ou resolvesse um dos problemas então em aberto da matemática. Souzinha, Alencar, Ramos e Amoroso Costa podem ser vistos como meros “engenheiros e diletantes da matemática” – e, nesse caso, nada teriam a ver com a história que leva a Artur. Ou como pioneiros em um solo árido e infértil para a pesquisa científica – e que, de algum modo, contribuíram com algo tão ou mais importante do que resultados científicos: mudar a mentalidade do ambiente. 

Haverá quem diga que a citação de tais nomes aqui é só uma forma de “fazer justiça” a eles. Pergunta-se: haveria algo mais nobre do que fazer justiça? 

Há aqueles que gostam de iniciar a história da matemática no Brasil com a Universidade de São Paulo, para onde vieram, em meados da década de 1930, os matemáticos italianos Luigi Fantappié (1901-1956) e Giácomo Albanese (1890-1947). Há os que preferem jogar esse marco para a fundação do IMPA, que nasceu, no início da década de 1950, em uma sala do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, para – aceitem ou não alguns – resolver um problema de um dos grandes matemáticos que o Brasil já teve, Leopoldo Nachbin (1922-1993), a quem a Universidade do Brasil foi preconceituosamente refratária ao impedi-lo de prestar concurso.

Como a história não evoca para si a exatidão das ciências, então, a escolha de onde começar a história de Artur fica por conta de critérios pessoais, políticos ou do ego de cada um.

 

Investimento de décadas

Em parte, a medalha de Artur é resultado de uma estratégia formulada e posta em prática há décadas pelo IMPA: pensar grande – e deixar de lado, para citar palavras de Artur a um jornal, a “autoestima de vira-lata” da ciência no Brasil. E isso envolveu – sem conotação pejorativa – fazer lobby dos resultados alcançados. Repita-se: não há nenhuma rebarba depreciativa no termo. É algo que, pelo contrário, deve ser enaltecido.

Nesse sentido, vale citar a introdução de Ciência Hoje n° 299 para o especial Nobel que a revista publica anualmente: “A candidatura de brasileiros [ao Nobel] nunca vingou. Este signatário já se envolveu em campanha para a promoção de cientista nosso ao Nobel. Impressão que ficou ao lidar com academias e autoridades daqui: egos inflados, desunião, incredulidade, falta de interesse pela promoção do alheio… Lobby, certamente, não decide. Mas é, em certas categorias do prêmio, essencial. E a promoção de candidaturas cairia bem para um país que, neste momento, almeja posição destacada no cenário geopolítico internacional. Mas, talvez, haja outra pergunta (mais incômoda, mais provocativa): o Brasil quer ganhar um Nobel?”

Certamente, o Brasil sempre quis ganhar uma Medalha Fields. E trabalhou muito e duro para isso, formando gente de primeiríssima e obtendo resultados de igual nível

Não há resposta para a pergunta acima. Mas, certamente, o Brasil sempre quis ganhar uma Medalha Fields. E trabalhou muito e duro para isso, formando gente de primeiríssima e obtendo resultados de igual nível. O resultado está aí: um marco ad aeternum para a ciência brasileira. E também um grande mérito para os chamados Institutos de Pesquisa, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que, não raramente, sofrem ataques dos que teimam em não entender a história e o papel da pós-graduação neste país. Se os planos dessas correntes tivessem vingado, o IMPA talvez nunca tivesse formado Artur. E…

Vale aqui lembrar outro brasileiro indicado para a medalha anos atrás, Marcelo Viana, também do IMPA e ganhador da primeira edição (2005) de outra láurea igualmente de prestígio, o prêmio Ramanujan. Como Artur, Marcelo também trabalha com os chamados sistemas dinâmicos não lineares (aqueles que, mesmo minimamente perturbados, podem mudar bruscamente seu comportamento), área em que o Brasil é referência mundial. 

E, retrocedendo um pouco mais a linha temporal, tem-se um nome que está na raiz dos feitos de Artur e Marcelo: o norte-americano Stephen Smale, também Medalha Fields e que tem longa tradição de cooperação com a matemática brasileira. Smale é um tipo de ‘avô matemático’ de Artur e Marcelo.

E, para fazer justiça, vale citar que Artur e Marcelo foram alunos de dois outros grandes nomes da matemática brasileira, Jacob Palis e César Camacho, ambos do IMPA e que, em boa parte, são responsáveis por promover o nome da matemática brasileira no cenário mundial. 

Matemáticos brasileiros
Da esq. para a dir., Joaquim Gomes de Souza (foto: Portela, Bacelar – Gomes de Souza e sua obra, UFMA, 1975), Theodoro Ramos (foto: Wikimedia Commons CC BY-SA 3.0), Manuel Amoroso Costa (foto: Wikimedia commons) e Otto de Alencar (foto: Wikimedia Commons), alguns dos grandes nomes que pavimentaram os degraus que levaram nossa matemática à medalha Fields.

Se aceitarmos que a história pode começar quando bem entendermos – ou quando mais nos convier –, corremos o risco de, daqui a 100 anos, nos esquecermos de nomes como Ávila, Viana, Palis e Camacho, entre tantos e tantos outros que construíram (às vezes, no anonimato) a história da matemática neste país.

Seria, no mínimo, injustiça.

E aqui vale citar algo que a mídia parece não ter dado a ênfase merecida: a Medalha Fields para uma mulher, a iraniana Maryam Mirzakhani. É também um marco, pois a história na matemática mundial pode ser vista como uma sequência de discriminações e preconceitos contra as mulheres. Então, para fazer justiça a duas pioneiras brasileiras, vale mencionar – em uma homenagem a todas as outras matemáticas do Brasil – Marília Peixoto (1921-1961) e Elza Gomide (1925-2013), para ficar com só dois entre vários nomes possíveis. 

Escolas e famílias ainda têm o péssimo hábito de dizer para suas alunas e filhas que matemática – na verdade, ciências exatas – é coisa de menino. Maryam, certamente, servirá de modelo para muitas meninas no mundo que gostam de números e símbolos. E seu nome está agora ao lado de outras pioneiras  das exatas.

Talvez, agora, Artur tenha sua biografia no MacTutor, ao lado de Paulo Ribenboim, o único brasileiro até agora a constar desse excelente banco de dados sobre a história da matemática mundial.

Artur deve ser longamente saudado – e desde já se deposita nele a esperança de que forme muitos outros matemáticos. O IMPA merece respeito e os mais efusivos cumprimentos por continuar a formar pesquisadores tão gabaritados. E por nunca ter deixado de pensar grande.

Neste momento ímpar para a ciência brasileira – algo, talvez, só comparável à detecção do méson pi pelo então jovem físico César Lattes (1924-2005) em 1947-48 –, não podemos nos esquecer de que Artur é, sim, produto de uma luta – longa e, por vezes, bem inglória – pela instauração e manutenção da pesquisa no Brasil. Lattes nunca se esqueceu de seus professores e de citar o valor de pioneiros como Souzinha, Alencar, Ramos e Amoroso Costa, entre tantos outros.

Espera-se que isso não seja um problema para Artur.

 

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ