Bola das bolas

A essa altura, a Copa do Mundo de 2010 já tinha uma personagem eternizada na história do futebol. Não falamos da incansável vuvuzela ou do saudoso polvo Paul, mas da bola Jabulani e seus movimentos imprevisíveis. Na edição brasileira do torneio, a Brazuca não chega perto do mesmo destaque – e nem pretende: foi desenvolvida especificamente para evitar a esquizofrenia que fez a fama do bólido sul-africano.

Para pesquisadores da agência espacial norte-americana (Nasa), que estudaram os detalhes aerodinâmicos da nossa ‘gorduchinha’ e explicaram os motivos de sua estabilidade, a Brazuca está por trás do aumento da média de gols do torneio. Será ela a bola das bolas?

Estudos aerodinâmicos permitem entender como o design dos objetos interfere no fluxo de ar ao redor deles, o que é fundamental, no futebol, para determinar a velocidade e a trajetória que podem tomar. “A Jabulani ficou famosa por suas mudanças de trajetória inesperadas, um efeito conhecido como knuckling e que ocorria quando ela se movia sem ou com pouca rotação em chutes entre 55 e 60mph [em torno dos 90km/h], os mais usuais nesse tipo de torneio”, explica Rabi Mehta, do Centro de Pesquisas Ames, da Nasa, que testou a Brazuca. “Isso tornou a Jabulani alvo de muitas críticas, não só de goleiros, mas também de atacantes, pois o efeito limitava a precisão dos chutes.”

Veja um vídeo sobre a Jabulani e a baixa média de gols do início da Copa de 2010

Para resolver o problema, os testes para o desenvolvimento da bola de 2014 envolveram a participação de centenas de jogadores. O modelo final da Brazuca é composto por um número inédito de ‘gomos’ ou painéis: apenas seis, contra oito da Jabulani e 32 das bolas comuns. O formato alongado em forma de hélice de cada um deles aumentou o comprimento das emendas, que também estão mais profundas, e a bola ainda é coberta por pequenas saliências que alteram a resistência do ar e são fundamentais para sua aerodinâmica.

O modelo final da Brazuca é composto por um número inédito de ‘gomos’: apenas seis, contra oito da Jabulani e 32 das bolas comuns

A Nasa testou a Brazuca num túnel de vento e num tanque com água, para observar sua oscilação e como se comportam os fluidos em contato com ela, em variadas velocidades. O resultado mostrou uma variação máxima nessa interação – ou seja, o knuckling – em velocidades entre 30 e 35mph (por volta de 50km/h), mais baixas que as da maioria dos chutes no futebol profissional.

“O número reduzido de gomos deixa a bola mais consistente e os dados mostram que ela é mais estável e tem trajetória mais previsível em chutes”, afirma Mehta. A superfície rugosa também aumenta a fricção com a chuteira, o que permite aplicar mais rotação e efeito ao chute, e diminui a desaceleração da bola, como explica o pesquisador: “Em velocidades menores, as pequenas saliências interferem na camada de ar que se forma ao redor da bola, reduzindo a turbulência durante sua trajetória e produzindo menos força de arrasto, o que faz a bola chegar mais depressa ao gol e torna a defesa mais difícil.” 

Bola definitiva?

Os jogos cheios de emoção da Copa do Mundo parecem reforçar que a bola tem tudo para cair nas graças dos atacantes – a média de gols do torneio é de 2,8 por partida (por enquanto, a maior desde 1982) e ainda na fase de oitavas-de-final o número total já superou os 145 anotados na África do Sul em 2010. “É claro que há muitos fatores que influenciam esse aumento, mas acredito que a bola é parte da explicação”, avalia Mehta. “A Jabulani e Teamgeist, usada em 2006 na Alemanha, sofriam muito com o knuckling e os jogadores não gostam disso, mas neste ano não há reclamações.”

Confira um vídeo que mostra os testes realizados pela Nasa

Será que aquela que muitos têm considerado a Copa das Copas tem como coadjuvante de luxo nada menos do que a bola das bolas? Talvez, pelo menos até a próxima edição do torneio. Porém, Mehta lembra que sempre há pontos a serem melhorados. “Por exemplo, ela ainda é feita a mão, um processo que pode ser refinado”, diz. “Se essa é a melhor bola de futebol de todos os tempos? Só o tempo poderá dizer… O que posso afirmar é que será desenvolvida uma nova bola para a próxima Copa, na Rússia, e que ela provavelmente herdará muitos conceitos aerodinâmicos da Brazuca.”

O mais curioso é que o comportamento da Brazuca a deixa muito mais próxima das tradicionais bolas com 32 painéis do que de suas antecessoras, já que naquelas os efeitos máximos de knuckling também ocorrem no intervalo entre 30-35 mph.

Mehta: “O desenvolvimento de uma bola de futebol é uma busca por precisão, velocidade, maciez, máxima transferência de energia no chute e segurança para cabeçadas – e a Brazuca tem tudo isso”

Mas é claro que a Brazuca é muito mais sofisticada – e cara – do que as bolas ‘tradicionais’. “Enquanto as bolas normais são costuradas à máquina, os painéis de poliuretano da Brazuca são unidos termicamente, o que a deixa mais impermeável e com menos variabilidade decorrente do processo de costura”, compara Mehta. “O desenvolvimento de uma bola de futebol é uma busca por precisão, velocidade, maciez, máxima transferência de energia no chute e segurança para cabeçadas – e a Brazuca tem tudo isso.”

Ah, e se alguém estranhou o fato de uma agência espacial estudar uma bola de futebol, basta considerar o recente crescimento do esporte nos Estados Unidos, a expertise da Nasa nos estudos de aerodinâmica e a popularidade da modalidade em todo o mundo, que a torna um excelente meio para a educação e a divulgação científicas. “A Copa do Mundo é uma ótima oportunidade para mostrar às pessoas a ciência aplicada a uma área muito próxima delas e para abordar conceitos de aerodinâmica com os estudantes, por exemplo”, conclui Mehta.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line