Brasil, potência olímpica?

O Brasil está longe de ser uma potência olímpica como os Estados Unidos ou um foguete em ascensão, como a China. Apesar de seu legado em certas modalidades, o melhor resultado recente do país no quadro geral de medalhas das Olimpíadas foi um 16º lugar na Grécia, em 2000 – modesto, considerando nossas proporções continentais. Como sede dos próximos Jogos, o país desenvolve diversos projetos e redes de pesquisa aplicada para acelerar o desenvolvimento na área, investindo na aproximação entre academia, esporte e indústria – mas ainda há muitas barreiras a serem superadas. 

Uma dificuldade básica, mas ainda muito comum, é o acesso aos equipamentos mais avançados, que chegam muito caros ao Brasil devido aos custos de importação. Para os atletas de ponta de modalidades com maior tradição (e com mais recursos), como a vela, essa barreira é mais facilmente superada. Porém, modalidades de menor destaque que usam equipamentos complexos sofrem com altos preços: nossa equipe de bobsled (competição de alta velocidade com trenó), por exemplo, competiu nas últimas Olimpíadas de Inverno, na Rússia, com um veículo de segunda mão, enquanto os trenós de alguns adversários foram desenhados por equipes de Fórmula 1.  

Barros: “Não há tecnologia que não possamos dominar, mas falta estrutura para inovar e investir em longo prazo”

Mais do que o acesso, no entanto, para muitos pesquisadores, como o engenheiro biomédico Alexandre Pino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o gargalo central do desenvolvimento esportivo brasileiro é a falta de pesquisas aplicadas e de inovação no país. “Os estudos no campo esportivo têm crescido, em especial os relacionados à preparação dos atletas e à prevenção de lesões, mas ainda são insuficientes e há grandes lacunas na produção de equipamentos, por exemplo”, avalia.   

Nesse sentido, um grande abismo parece isolar as iniciativas na área: a pouca interação entre universidade e setor privado, velho problema da ciência brasileira. “Não há tecnologia que não possamos dominar, mas falta estrutura para inovar e investir em longo prazo”, afirma o educador físico Ricardo Barros, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “É preciso criar um ambiente comercial forte, onde existam laboratórios de inovação nas empresas.” 

Bobsled
Os altos custos de importação, a falta de investimentos no desenvolvimento de equipamentos esportivos e a pouca tradição em inovação das empresas brasileiras seguem como gargalos para o avanço do esporte nacional. Nas Olimpíadas de Inverno de Sochi, alguns dos trenós supervelozes foram desenvolvidos por equipes de Fórmula 1, enquanto o do Brasil era de segunda mão. (foto: U.S. Army IMCOM/ Flickr – CC BY-NC 2.0)

O engenheiro Cleudmar Araújo, coordenador do Núcleo de Habilitação/Reabilitação em Esportes Paralímpicos (NH/Resp) da Universidade Federal de Uberlândia (Minas Gerais), concorda. “Em modalidades esportivas como o futebol de sete, até a bola é importada; esses materiais precisam ser produzidos aqui”, destaca. “Quem financia a pesquisa no Brasil são os órgãos de fomento, enquanto lá fora grande parte dela ocorre nas empresas.”

Araújo: “Em modalidades esportivas como o futebol de sete, até a bola é importada; esses materiais precisam ser produzidos aqui”

Para o engenheiro biomédico Orivaldo Silva, da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), mesmo os órgãos de fomento nacionais ainda precisam adequar melhor suas estratégias para promover o desenvolvimento tecnológico na área. “Em geral, os editais são muito acadêmicos, quando precisamos é investir em inovação”, avalia. 

Outra grande lacuna na área, segundo os especialistas, é a distância entre a ciência e os atletas e treinadores que deveriam se beneficiar do conhecimento aplicado. “Em geral, a pesquisa está nas universidades e os atletas, ligados às confederações; o diálogo muitas vezes não é simples como deveria”, avalia Ricardo Barros. “Faltam estruturas organizacionais e físicas que reúnam pesquisadores e esportistas para discutir as prioridades.” 

Para 2016, os comitês olímpico e paralímpico brasileiros preveem a construção de centros de treinamento no Rio de Janeiro e em São Paulo, de forma a aproximar esporte e pesquisa. Além disso, para superar as barreiras que atrapalham esse diálogo, foram criadas a Academia Brasileira de Treinadores e a Academia Paralímpica Brasileira, que formam profissionais mais preparados para aplicar o conhecimento na prática esportiva e para aprimorar a gestão esportiva nacional.

 

Movimentos sob análise

Apesar dos problemas, nas universidades e centros de pesquisa nacionais há diversos projetos que aliam ciência e esporte no treinamento, desenvolvimento tecnológico e prevenção de lesões. Para Barros, entre as áreas que mais têm evoluído no país estão a biomecânica, a bioquímica e a fisiologia. “São avanços relacionados: enquanto a biomecânica quantifica o esforço, a bioquímica e a fisiologia mostram as alterações que ele provocou no organismo”, explica. “A partir disso, é possível fazer ajustes no treinamento, identificar possibilidades de melhora e tendências a lesões, por exemplo.”

O futebol é um dos esportes onde essas inovações estão mais presentes – clubes brasileiros como o Corinthians já possuem laboratórios de biomecânica, por exemplo. “Se, por um lado, no futebol ainda existe uma ‘cultura boleira’, amadora, por outro, há muito dinheiro: os recursos para montar um centro desse tipo são pequenos perto das somas movimentadas na modalidade”, avalia Barros. “No entanto, esse trabalho ainda tem relação maior com a preparação física e médica do que com o aspecto tático; ainda não são todos os técnicos que se interessam pela tecnologia.” 

Prancheta
Prancheta é coisa do passado: sistemas de avaliação da movimentação dos atletas e até laboratórios de biomecânica já fazem parte da rotina do futebol e podem ajudar tanto na preparação física quanto na parte técnica e tática do jogo. (foto: Flickr/ uomouranio1 – CC BY-NC-ND 2.0)

Na Unicamp, Barros trabalha com análise e quantificação do movimento de jogadores em esportes coletivos e individuais desde 1998. “Desenvolvemos sistemas capazes de analisar a posição dos atletas a cada instante, permitindo determinar trajetória, velocidade, explosão, distância percorrida, entre outras variáveis, dados que podem ajudar a avaliar os aspectos físicos, técnicos e táticos do jogador e da equipe”, explica. 

Barros: Vende-se uma ideia de que essas medidas são exatas, mas não são: há incertezas na medição e a calibração do sistema é feita a partir das linhas do campo, que são traçadas no olho, com enorme imprecisão

Basicamente existem dois tipos de tecnologia para esse tipo de avaliação: uma utiliza sensores de GPS ou de radiofrequência instalados no tênis ou no calção dos atletas; a outra, o processamento da imagem de sistemas de câmeras que acompanham a movimentação. Essa tecnologia, aliás, já é aplicada no tênis, por exemplo, para resolver lances polêmicos. “A partir de um sistema de câmeras que acompanham todos os movimentos são criados modelos tridimensionais que mostram se a bola foi ‘dentro’ ou ‘fora’”, esclarece Barros. No futebol, essa tecnologia é usada para criar mapas de deslocamento dos jogadores nas partidas e um novo sistema emprega procedimento similar para monitorar se a bola entrou ou não no gol

Barros alerta, no entanto, que a ‘popularização’ dessa tecnologia pode resultar em aplicações muito simplificadas e erros. “Por exemplo, o uso de aparelhos de GPS de frequência muito baixa pode levar a conclusões incoerentes, pois eles não terão precisão suficiente para esse tipo de estudo”, destaca.

Outro problema é o caráter de infalibilidade que muitas vezes se concede ao sistema. “Vende-se uma ideia de que essas medidas são exatas, mas não são: há incertezas na própria medição e a calibração do equipamento é feita a partir das linhas do campo, que no futebol são traçadas no olho, com enorme imprecisão”, pondera.

 

Tênis e remo sob análise

Na USP de São Carlos, o grupo de Orivaldo Silva desenvolve sistemas biomecânicos para avaliação da movimentação de tenistas. O objetivo é identificar, por exemplo, mecanismos associados a lesões de músculos e articulações a partir da análise de características dinâmicas como a forma de segurar a raquete, bater na bola ou pisar na quadra. Para criar o sistema, ainda em aperfeiçoamento, a equipe trabalha com jogadores profissionais iniciantes, evitando atletas mais experientes.  

“Os jogadores mais experientes possuem, em geral, um estilo próprio para realizar seus movimentos. Trabalhamos com atletas mais iniciantes para desenvolver um sistema que não esteja ‘viciado’ por essa programação”, explica Silva. “Em uma comparação simples, quando uma equipe de Fórmula 1 testa o carro, não chama o campeão mundial, mas um piloto de testes, que tem um estilo menos marcado, o que torna mais fácil avaliar o próprio carro.” A ideia é modelar um sistema que sirva para todos, a partir da comparação com um ‘ser humano’ virtual genérico, mas representativo. 

Tênis sob análise
Voluntário com marcadores reflexivos fixados no corpo (à esquerda) e reconstrução tridimensional dos movimentos executados (à direita). Sistema de avaliação biomecânica pode ajudar a prevenir lesões associadas à prática do tênis e aprimorar o treinamento dos atletas. (foto: Michelli Bersanetti)

Na UFRJ, Alexandre Pino também realiza um trabalho de monitoramento biomecânico, mas com outro esporte olímpico, o remo, em parceria com a equipe do Flamengo. Equipamentos e sensores são instalados no barco e analisam a movimentação dos remadores a partir de parâmetros como a posição de seu tronco, a força aplicada ao remo e o movimento do ‘carrinho’ (parte móvel da embarcação onde os atletas se posicionam). A proposta é identificar, por exemplo, vícios e problemas de movimentação e desenvolver estratégias para sincronizar melhor as remadas nos barcos com mais de um remador.  

Até o fim de 2014, o grupo pretende ter um barco-protótipo próprio, que não precise ser montado e desmontado a cada medição. Apesar dos avanços, Pino destaca que o projeto sofre com problemas comuns nesse tipo de iniciativa. “Além de questões técnicas, como panes, é difícil manter uma rotina de treinamentos”, diz. “Todos estão muito bem intencionados, mas há questões de agenda, provas, eventos, competições, viagens e uma delicada interação com atletas e técnicos que por vezes acaba atrasando o projeto.”

Esporte paraolímpico

No esporte paraolímpico, em que as próteses e cadeiras de roda especiais são fundamentais para a própria prática de certas modalidades, também há diversas iniciativas em andamento. “Nessa área, os altos custos se refletem já na iniciação esportiva”, avalia o educador físico Ciro Winckler, coordenador técnico de atletismo do Comitê Paralímpico Brasileiro. “Por isso, buscamos parcerias com universidades e institutos de pesquisa, para criação de equipamentos que facilitem esse contato inicial.” A CH On-line já falou de um projeto desse tipo, a criação de cadeiras de rodas especiais para a prática do rúgby em escolas públicas pelo Instituto Nacional de Tecnologia (INT).  

Um bom exemplo de centro dedicado ao desenvolvimento de tecnologia para o esporte paraolímpico é o NH/Resp, coordenado por Cleudmar Araújo. Criado em 2012 no âmbito do programa ‘Viver sem limites’, o núcleo integra a Rede Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento em Tecnologia Assistiva, ainda em fase de consolidação. 

Rugby
Em modalidades paraolímpicas, equipamentos como cadeiras de rodas e próteses são essenciais para a própria prática esportiva. Às vésperas dos Jogos de 2016, Brasil tenta aproximar academia e empresas para estimular a inovação na área de equipamentos esportivos de ponta e também para iniciação no esporte. (foto: Flickr/ steeljam – CC BY-NC-ND 2.0)

A própria estrutura do NH/Resp ainda está em desenvolvimento, mas o núcleo já organiza diversos projetos tecnológicos, como novos dispositivos de resistência e treinamento muscular específicos para cadeirantes, aparelhos simples e de baixo custo para serem colocados em máquinas de musculação e fisioterapia tradicionais. 

“Alguns atletas precisam realizar exercícios com perfis de velocidade e aceleração específicos, mas equipamentos com pesos e cabos não permitem movimentos rápidos, devido à alta inércia”, explica Araújo. “Estamos projetando um novo tipo de dispositivo de baixa inércia, que pode auxiliar, por exemplo, atletas do halterofilismo paraolímpico.” 

Faltam pouco mais de dois anos para os Jogos do Rio de Janeiro – momento único na história do país e oportunidade singular de investimento em políticas públicas de ciência, tecnologia, popularização do esporte e inclusão social

Em parceria com empresas privadas, o núcleo também trabalha em novas cadeiras para o arremesso de peso, disco e dardo paraolímpico. “Temos estudado parâmetros como a distribuição da pressão no assento para criar modelos que deem maior estabilidade e velocidade aos atletas”, explica o engenheiro. A bocha paraolímpica também é contemplada nas pesquisas. Nessa modalidade, os atletas, que têm pouco controle motor, usam uma calha para controlar a bola com a boca. “Estamos na fase inicial da criação de um modelo nacional, testando formatos, configurações e materiais”, diz. 

O NH/Resp investe ainda em um ergômetro para cadeirantes destinado à avaliação de suas condições físicas, como um teste de esforço. “Existem modelos adaptados e similares, mas eles são menos precisos ou muito caros”, pondera o coordenador do núcleo. O protótipo, em sua terceira versão, tem estrutura parecida com uma cadeira de rodas e poderá ser usado na avaliação de atletas e até em academias, para a criação de programas específicos de treino de acordo com condições musculares e cardiovasculares.

Faltam pouco mais de dois anos para o início dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro – um momento único na história do país que traz consigo uma oportunidade igualmente singular de investimento e desenvolvimento de políticas públicas responsáveis em ciência, tecnologia, popularização da prática esportiva e inclusão social. Mesmo que seja impossível nos transformarmos em uma potência esportiva da noite para o dia, o que podemos esperar desse período é que, ao menos, encerremos nosso ciclo olímpico com um legado duradouro para o futuro.

 

Este é o quarto e último texto da série especial ‘Supermáquinas do esporte‘, publicada esta semana na CH On-line. Confira!


Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line