Economia e poder

Para Nicolau Maquiavel (1469-1527), a economia é sempre parte da política – fator de tranquilidade ou conflito, estratégia de governo ou componente da grandeza do Estado. Em mais de uma passagem em sua obra, ele trata de assuntos como produção e distribuição de riquezas, tributação, gasto público e liberdade econômica, mas sem avançar em discussões teóricas, como haviam feito outros autores. Sem teorizar sobre esses temas, ele faz da economia um componente importante da análise das relações de poder e da evolução dos regimes, como nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e na História de Florença

A identificação entre o interesse particular e o do Estado tem sentido em um contexto restrito: o da segurança e da grandeza do principado e da relação de forças mais favorável ao príncipe, aconselhado a apoiar-se mais no povo que nos ‘grandes’

Em O príncipe, a mais longa referência à economia aparece no fim do capítulo 21, dedicado às condições para um governante ser estimado. “Deve ainda um príncipe mostrar-se amante da virtù, dando hospitalidade aos homens virtuosos e honrando aqueles que são excelentes em uma arte. Deve ainda animar os cidadãos a exercitar tranquilamente suas atividades – na agricultura, nos negócios e em todas as outras ocupações dos homens. E que ninguém receie melhorar sua propriedade por medo de que lhe seja tomada, nem abrir um comércio por medo dos impostos. Mas deve [o príncipe] estabelecer prêmios a quem deseje fazer estas coisas e a qualquer um que pense de algum modo engrandecer sua cidade ou seu Estado (…)”.

Essa passagem é preciosa: 1. pela admissão do interesse privado, na economia, como fator de engrandecimento do Estado; 2. pela proposta de prêmios a quem se disponha a desenvolver suas atividades; 3. pela defesa de uma tributação moderada sobre a atividade econômica. Seria exagero apontar nesse texto antecipações do pensamento liberal. A identificação entre o interesse particular e o do Estado tem sentido, neste caso, em um contexto restrito. Trata-se da segurança e da grandeza do principado e da relação de forças mais favorável ao príncipe, aconselhado a apoiar-se mais no povo que nos ‘grandes’.

Castelo
Entre a nobreza e o povo, para Maquiavel, a escolha é simples: os nobres podem sempre derrubá-lo. Já o povo é um aliado muito mais confiável: menos perigoso, pode mobilizar-se em defesa do príncipe. (imagem: Paisagem com castelos/ Bartolomeo Montagna/ Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)

Entre a nobreza e o povo, a escolha é simples, segundo Maquiavel. Os nobres, julgando-se iguais ao príncipe, podem sempre ser tentados a derrubá-lo. O povo, menos ambicioso e interessado primordialmente em buscar comodidade e evitar a opressão, é um aliado muito mais confiável: é menos perigoso para o governante e, diante da ameaça do grupo mais propenso a oprimir, pode mobilizar-se em defesa do príncipe.

A reputação de avaro é preferível, porque elimina a expectativa de grandes gastos com benesses e ostentação, aumenta o valor de cada ato generoso e dispensa o governante de elevar impostos

Ao tratar do principado, Maquiavel raramente se refere à economia ou a detalhes da política econômica. As poucas menções são relacionadas à estratégia do poder. A passagem do capítulo 21 se distingue pela extensão e pelo detalhe na enumeração das atividades. Além disso, o texto se completa com uma referência à divisão das cidades em ‘artes’ (classes de profissões) e tribos (quarteirões ou bairros caracterizados pela categoria dos ocupantes). A organização produtiva de Florença é retratada, em poucas palavras, com vivacidade. 

Só no capítulo 16 há outra longa exposição sobre um tema econômico – finanças do governo e tributação. Maquiavel discute nesse texto se é melhor para o príncipe ter fama de liberal ou de avaro. A reputação de avaro, conclui, é a preferível, porque elimina a expectativa de grandes gastos com benesses e com ostentação, aumenta o valor de cada ato generoso e dispensa o governante de elevar impostos. 

Quando se trata de distribuir despojos do inimigo, no entanto, a generosidade é o caminho mais útil. Mas, para sustentar mesmo um exército permanente formado só de camponeses, é necessário recolher tributos. Uma organização política eficiente envolve, como se afirma em O príncipe, “boas leis e boas armas”. Esse tema havia sido examinado, antes, em memorandos funcionais, como as “Palavras sobre a provisão de dinheiro”, de 1503. 

Conflitos entre classes

Nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e, bem mais tarde, na História de Florença, o aspecto político da economia é visto da perspectiva da divisão de classes. O interesse fundamental, nos dois casos, é a discussão dos conflitos entre grupos socioeconômicos e de suas consequências para a liberdade e a estabilidade da ordem política.

Nos Discursos, Maquiavel procura mostrar como os embates entre patrícios e plebeus, em um espaço definido pelas instituições, garantiu por longo tempo a estabilidade da república romana. Na História de Florença, os resultados foram outros, porque nunca foram limitadas as disputas e as tentativas de cada grupo de assumir o domínio total do Estado. Nunca houve um mecanismo de contenção e de equilíbrio nas lutas entre os grandi e o popolo, nem entre o popolo grasso e o popolo minuto, quando se dividiam as forças populares. 

Ao esmiuçar essas divisões, como na revolta dos Ciompi, em 1378, Maquiavel descreve, como pano de fundo, a organização de uma cidade composta de banqueiros, empresários de grandes corporações industriais e os grupos mais dependentes, como os trabalhadores da lã no fim do século 14. Os detalhes da vida econômica, no entanto, são complementos da descrição política. No primeiro plano estão sempre as relações de poder. 

Rolf Kuntz
Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo