Engenharia perfeita

As pesquisas agraciadas com o prêmio Nobel nesta segunda-feira (07/10) abordam o funcionamento de um sistema de transporte altamente eficiente e preciso, de fazer inveja a qualquer urbanista ou engenheiro de produção. Não, caro leitor, não estamos falando de uma premiação de economia ou física, mas sim do Nobel de Medicina ou Fisiologia, concedido aos norte-americanos Randy Schekman e James Rothman e ao alemão Thomas Südhof por suas descobertas fundamentais para a elucidação dos precisos mecanismos de transporte de moléculas no interior das células.

O meio intracelular é como o chão da fábrica da vida, na qual as mais variadas moléculas, como enzimas e hormônios, são transportadas de um ‘equipamento’ – uma organela – para outro. A delicada logística do conjunto é baseada no fluxo de pequenas vesículas, ‘pacotes’ isolados do meio celular que transportam essas tais moléculas e são capazes de se acoplar com grande precisão e especificidade às membranas das diversas organelas celulares e à parede da própria célula, no momento correto, para liberar seu conteúdo.

“A todo momento, inúmeros processos ocorrem no interior de nossas células e diversos tipos de moléculas estão em movimento por lá”, explica a farmacóloga Flavia Pinheiro Zanotto, da Universidade de São Paulo (USP). “Esse tráfego não ocorre livremente no meio celular, mas por meio do complexo e muito específico mecanismo de transporte que os três pesquisadores premiados ajudaram a elucidar.”

O sistema é fundamental para a incorporação de nutrientes às células, a resposta imune, a condução de sinal em neurônios, a contração muscular, entre muitos outros processos

O sistema é fundamental para a incorporação de nutrientes às células, a resposta imune, a condução de sinal em neurônios, a contração muscular, entre muitos outros processos. Problemas nessa engrenagem podem ocasionar doenças neurológicas, como a doença de Alzheimer, desordens imunológicas e até diabetes – uma vez que o processo regula, por exemplo, a liberação de hormônios como a insulina na corrente sanguínea. “Além disso, a ação de certas toxinas e bactérias também está relacionada a alterações nesse sistema, com reflexos em todo o tecido ou órgão afetado”, reforça Zanotto.

A biofísica Flavia Carvalho Alcantara Gomes, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca a enorme contribuição das pesquisas para a compreensão dos aspectos fundamentais da célula. “A beleza dos trabalhos é que eles estudam etapas distintas e utilizam modelos diferentes, mas se debruçam e esclarecem um mecanismo comum”, avalia. “Na verdade, eles são tão gerais e fundamentais que funcionam como substrato para entender os mecanismos comuns a todos os sistemas biológicos, por isso receberam esse prêmio com grande merecimento.”

Os laureados

Os três laureados, que dividirão o prêmio de oito milhões de coroas suecas, algo em torno de 3 milhões de reais, desvendaram aspectos diferentes dessa logística. O norte-americano Randy Schekman, atualmente pesquisador da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, descobriu uma série de genes envolvidos no funcionamento desse mecanismo de transporte celular ainda na década de 1970. Ele analisou uma linhagem de leveduras com um problema genético, que levava ao acúmulo de vesículas, uma espécie de engarrafamento no interior das células. Schekman observou que a causa do fenômeno era genética e acabou por identificar três classes de genes relacionados ao funcionamento desse sistema de transporte celular.

Nas décadas seguintes, seu compatriota Rothman, atualmente professor da Universidade de Yale (Estados Unidos), utilizou células de mamíferos para estudar o complexo quebra-cabeças de proteínas envolvido nesse sistema. Ele observou que diferentes conjuntos de proteínas bem específicos permitiam às vesículas se acoplar e se fundir às membranas de seus alvos para realizar a transferência de ‘carga’ – como uma espécie de zíper altamente preciso. Mais do que isso: Rothman verificou que muitos dos genes identificados por Schekman estavam relacionados à expressão dessas proteínas, evidenciando a existência de um mecanismo de transporte ancestral.

Organelas celulares
O delicado sistema de tráfego vesicular entre as organelas no interior das células e o meio exterior envolve conjuntos de genes e complexos de proteínas que garantem a especificidade e precisão do processo. (imagem: Wikimedia Commons)

Já o alemão Thomas Südhof, atualmente pesquisador na Universidade Stanford (Estados Unidos), estudou a liberação de neurotransmissores produzidos no interior da célula nervosa no processo de comunicação entre neurônios. Ele conseguiu identificar os sinais químicos capazes de induzir a vesícula a liberar as moléculas no momento preciso, permitindo a correta transmissão do impulso nervoso – trabalho que estabelece as bases moleculares para a compreensão dos mecanismos de secreção comuns a outros tipos celulares, que obedecem a sinais químicos semelhantes.

Fundamentos da célula

Para o biofísico Kildare Rocha de Miranda, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, também da UFRJ, o prêmio reconhece a extrema importância da ciência básica para o desenvolvimento da pesquisa em geral. “Cada vez mais, conceitos básicos de biologia celular se integram a conceitos sistêmicos, com base farmacológica, fisiológica, bioquímica e genética”, diz. “A compreensão dos mecanismos que norteiam esse tráfego de vesículas comum a diferentes tipos celulares é fundamental para entender a interação entre essas diferentes células”.

Gomes: “Os desdobramentos dos trabalhos premiados podem ajudar a entender melhor certas doenças neurológicas ou neurodegenerativas e talvez a reparar seus danos”

Gomes ressalta a diferença entre essa premiação e outros recentes trabalhos agraciados com o prêmio Nobel, como o de 2012. “O prêmio é muito diferente do concedido no ano passado, não se refere a uma pesquisa nova ou a nenhuma metodologia recente de grande impacto”, analisa. “Os desdobramentos dos trabalhos premiados, no entanto, como o estudo dos desvios ou disfunções no sistema de transporte celular, podem ajudar a entender melhor certas doenças neurológicas ou neurodegenerativas e talvez a reparar seus danos.”

Em entrevista à revista Nature, o biólogo molecular Bill Wickner, da Universidade de Dartmouth (Estados Unidos), afirmou que a premiação joga luz sobre uma questão fundamental da biologia celular, abordada por aspectos muito diferentes – e que demorou até demais para acontecer. Já o imunologista Hidde Ploegh, do Instituto Whitehead (Estados Unidos), disse também à Nature que as descobertas fundamentais do trio ainda não haviam recebido a atenção que merecem. “Quando ensinamos biologia, muitos aspectos do transporte vesicular são apresentados como se sempre tivessem estado ali”, ponderou.

Os três cientistas já haviam recebido o Prêmio Lasker, outra importante comenda científica, por suas pesquisas. Südhof foi um dos contemplados em 2013, enquanto Schekman e Rothman ganharam o prêmio em 2002. Südhof e Rothman também ganharam o Prêmio Kavli de neurociência, em 2010.

Durante esta semana, serão anunciados os demais laureados com o prêmio Nobel de 2013, com cobertura completa da Ciência Hoje On-line.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line