Entre a preservação e a loucura

Qual a sua sensação quando vai a um zoológico? Essa resposta deve variar bastante de acordo com a instituição visitada, mas em geral os zoológicos despertam sentimentos fortes e até paradoxais – o frisson da proximidade dos animais selvagens muitas vezes contrasta com o estranhamento de observá-los em ambientes artificiais e apresentando comportamentos pouco naturais. Em pleno século 21, o papel dessas instituições é discutido por muitos: os zoológicos são fundamentais para a pesquisa e preservação das espécies? Ou seriam relíquias de tempos passados que deveriam ser aposentadas de vez?

Propositalmente, Captive não inclui ‘bons exemplos’: o objetivo é questionar o lugar dos zoológicos em nossa sociedade e incentivar a reavaliação dessas instituições

É exatamente essa a discussão despertada pela série Captive (Cativos, em tradução livre), que reúne imagens do fotógrafo Gastón Lacombe. O trabalho apresenta registros melancólicos – apesar de belos – das péssimas condições a que animais são submetidos em muitos zoológicos. As fotos foram feitas ao longo dos últimos quatro anos em dezenas de zoos de nove países (Estados Unidos, Canadá, Letônia, Brasil, Argentina, África do Sul, Itália, Sri Lanka e Filipinas). O fotógrafo não identifica as instituições que visitou, pois acredita que o debate deve independer de preconceitos políticos, econômicos ou sociais. 

Propositalmente, Captive não inclui ‘bons exemplos’: o objetivo é questionar o lugar dos zoológicos em nossa sociedade e incentivar a reavaliação dessas instituições. A questão é relevante, em especial pelo fato de denúncias sobre maus-tratos nessas instituições ainda serem, infelizmente, frequentes. Nos últimos anos, por exemplo, podemos citar os casos do ‘Zoo da morte’, na cidade de Surabaya, na Indonésia, do urso polar argentino maltratado Arturo, do zoológico chinês que tentou fazer cachorros se passarem por leões, da instituição na Malásia onde macacos foram encontrados fumando, do parque britânico que vendeu raros filhotes de leão para circos japoneses e do fechamento do centro croata considerado o pior zoo do mundo – entre muitos outros.

Costume antigo, discussão moderna

Os ‘ancestrais’ mais antigos dos zoológicos são as coleções de animais já reunidas há milhares de anos no Egito, na Mesopotâmia, na China e em outras regiões, então símbolos de status de reis e nobres.

“Os zoológicos modernos, acessíveis ao público, nasceram no século 18, mas o bem-estar dos animais é uma preocupação bem mais recente, do início do século 20”, conta o biólogo Cristiano Schetini de Azevedo, da Fundação Zoo-Botânica de Belo Horizonte (MG). “Hoje, os zoológicos são importantes centros de conservação, educação ambiental e lazer, realizam pesquisas em educação, biologia e veterinária e devem seguir normas que garantam a qualidade de vida dos bichos.”

Urso polar
Lacombe não costuma identificar as suas fotos, mas essa do urso polar Arturo, da Argentina, se destacou pela campanha popular em prol da transferência do animal para instalações mais adequadas no Canadá. (foto: Gastón Lacombe)

Em especial no que se refere à conservação, a zoóloga Yara de Melo Barros, presidente da Sociedade de Zoológicos e Aquários do Brasil (SZB), destaca que os zoos já foram fundamentais para salvar da extinção dezenas de espécies, como o cavalo-de-Przewalski, o condor-da-Califórnia, o bisão-americano, o furão-do-pé-preto e o mico-leão-dourado. “O suporte técnico e logístico dos zoológicos tem contribuído ainda para melhorar o status de conservação de muitos outros animais”, avalia. 

Barros também destaca o poder transformador que enxerga nessas instituições. “Para muitas pessoas, elas são o único meio de acesso à natureza e, portanto, sua maior propaganda, além de ferramenta educacional mais efetiva para falar sobre conservação”, defende. “A ‘mágica’ proporcionada pela visita a um bom zoo pode mudar atitudes, gerar empatia e estimular uma conexão mais sustentável e menos predatória com nosso planeta.”

Barros: “Para muitas pessoas, elas são o único meio de acesso à natureza e, portanto, sua maior propaganda, além de ferramenta educacional mais efetiva para falar sobre conservação”

Muitos, no entanto, pensam de forma diferente. Para a coordenadora da divisão latina da organização não governamental People for the Ethical Treatment of Animals (Peta), Renée Saldana, os zoológicos ensinam que animais podem passar a vida toda presos em nome do entretenimento. “Os visitantes vagam por lojas e lanchonetes e se detêm apenas alguns instantes numa jaula ou outra – mas, para os animais, esse é o dia a dia”, lembra. “Mesmo no caso de bichos que não podem viver em liberdade, a alternativa mais saudável seriam os santuários de animais sem fins lucrativos, não os zoos.”

Saldana cita o polêmico caso do zoológico de Copenhagen (Dinamarca), que sacrificou uma girafa e quatro leões em saúde perfeita, para falar de falta de respeito à vida dos animais. O zoo dinamarquês não é o único a adotar a eutanásia, em especial no caso de bichos idosos. “Sob o pretexto da preservação, os zoos mantêm espécies que não estão ameaçadas e criam animais para vender mais ingressos”, argumenta. “Não há nada mais atrativo do que filhotinhos, mas animais velhos gastam muito.” 

Recentemente, a Costa Rica anunciou a decisão de fechar todos os zoos públicos do país, libertando ou enviando os animais para santuários – um exemplo louvável, na opinião da ativista. “Se queremos proteger a natureza, deveríamos investir os recursos dos zoológicos na proteção das populações selvagens, combatendo ameaças como a destruição de hábitats, a caça e a introdução de espécies exóticas”, defende. “Não queremos jaulas maiores, mas sim jaulas vazias.”

Tigre
A falta de espaço e de ambientes adequados aumenta o estresse dos animais, baixa sua imunidade e pode levá-los a desenvolver comportamentos neuróticos. (foto: Gastón Lacombe)

Para a presidente da SZB, no entanto, nem sempre há alternativas. “Se considerarmos o ritmo de perda e degradação dos hábitats, a criação de reservas naturais é cada vez menos possível, e não se aplica a qualquer animal, especialmente aos que requerem cuidado intensivo”, observa. “A questão central é fazer com que essas instituições sigam padrões éticos no tratamento dos animais, fundamentais à conservação da natureza.”
 

Mínimo necessário

O ponto é polêmico, mas pelo menos há consenso sobre o fato de que os animais não podem ser vistos como objetos para o entretenimento. “No mundo conectado em que vivemos, será que precisamos expor os animais para diversão?”, indaga-se o fotógrafo Lacombe. “Idealmente, creio que não existiriam mais zoológicos, porém eles não deixarão de existir; então precisamos debater como garantir que propiciem melhor qualidade de vida aos animais e promovam a preservação de nossa fauna.”

Lacombe: “No mundo conectado em que vivemos, será que precisamos expor os animais para diversão?”

A tarefa, no entanto, não é tão simples. Para Cristiano Azevedo, o trabalho de Lacombe evidencia uma precária realidade ainda comum em muitas instituições. Ele elenca características necessárias para um zoológico de qualidade, que passam pela existência de recintos espaçosos e naturalísticos, de equipes qualificadas de biólogos e veterinários e de um programa permanente de enriquecimento ambiental para diminuir efeitos do cativeiro, além da presença de pares reprodutivos, da manutenção de registros dos animais para a criação de planos de manejo e da promoção de programas de educação ambiental.

Apesar de dizer não acreditar na felicidade de animais cativos, Renée Saldana destaca outras condições mínimas que precisam ser atendidas: a ideia principal é simular a natureza e garantir o espaço necessário para cada espécie. “Todos devem ter um ambiente diverso – com vegetação, areia e áreas longe das vistas do público – e que possibilite relações sociais apropriadas”, elenca. “Os animais também não devem sofrer mutilações, ter garras ou dentes arrancados, nem ter contato direto com visitantes ou realizar truques e apresentações.”

O problema, no entanto, é que muitos zoológicos e aquários não seguem essa ‘cartilha’. Nesses casos, a avaliação do bem-estar dos animais, feita com base em parâmetros comportamentais e fisiológicos, como índices de doenças, de sucesso reprodutivo e comparação com indivíduos na natureza, mostra padrões pouco naturais e neuróticos.

Abutre
Grandes aves, como o abutre, precisam de áreas espaçosas, em que possam voar e desempenhar seus comportamentos naturais – mas espaço é um item caro para os zoológicos. (foto: Gastón Lacombe)

“O estresse elevado baixa a imunidade, provoca doenças e comportamentos anormais e até automutilação, algo bastante degradante para os bichos e para o público”, avalia Azevedo. Saldana completa: “Elefantes são isolados por toda a vida, felinos perambulam inquietos, aves mal podem abrir as asas; estamos levando esses animais à loucura.”

Exemplos como o do zoo de Lujan (Argentina), acusado de sedar bichos para que interajam com os visitantes, são apontados como inaceitáveis. O documentário Black Fish, de 2013, também mostrou o efeito de cativeiro, maus-tratos e adestramento em baleias orca. No Brasil, também não faltam exemplos de problemas em zoológicos, como em Niterói, no Rio de Janeiro, onde a instituição foi  fechada e acusada de tráfico de animais.

Barros: “Julgar todos os zoológicos com base em exemplos ruins é uma forma tendenciosa e simplista de ver o problema”

A zoóloga Yara Barros admite a existência de muitos problemas nos zoológicos brasileiros, que ela credita a questões que vão da má administração à falta de recursos, passando pela pouca valorização por parte do poder público. “Uma pesquisa da SZB identificou 106 zoos e 10 aquários no país, mas muitos não constam nas listagens oficiais e não têm registro do número de animais que abrigam”, lamenta a zoóloga. “Das instituições mapeadas, mais da metade é municipal e 81% dessas têm entrada gratuita, são completamente dependentes das prefeituras.”

Barros ainda lembra, por outro lado, que existem exemplos positivos no país, como os zoos de São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, e que a discussão deveria se focar nas alternativas para criar mais centros de excelência. Para isso, ela defende a construção de estratégias que envolvam não só os zoos, mas também as entidades ligadas ao repasse de recursos, à normatização e à fiscalização da atividade.

“Julgar todos os zoológicos com base em exemplos ruins é uma forma tendenciosa e simplista de ver o problema”, pondera. “A qualificação dos zoos brasileiros passa pela criação de políticas que auxiliem as mudanças estruturais e a capacitação das equipes, deem mais eficiência às agências de normatização e fiscalização e promovam o comprometimento de cada zoo com o respeito pelas vidas que estão sob sua guarda”, completa.

 

Confira outras fotos da série Captive numa galeria de imagens especial.

 

Marcelo Garcia

Ciência Hoje On-line

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