Esportistas fora da lei

Cada passo, pedalada, braçada, fôlego a mais diferenciam a derrota e a vitória no esporte atual, que tem levado o corpo humano aos seus limites. Para atingi-los, porém, muitos optam por cruzar outras fronteiras – do bom senso, da ética e do próprio espírito olímpico.

O infatigável fantasma do doping segue derrubando carreiras, anabolizado pelo avanço tecnológico em torno do mundo esportivo. À luz de uma nova legislação internacional e às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016, o Brasil se prepara para enfrentá-lo, com uma expectativa ousada de reduzir a zero o número de casos de doping de atletas nacionais no evento, mas sem ter certeza de que teremos um laboratório credenciado capaz de encarar esse monstro de frente.

Radler: A criação da Agência Mundial Antidoping, em 1999, marcou uma virada decisiva no controle do doping

Em 2012, chocou o mundo o caso de Lance Armstrong, ciclista norte-americano sete vezes campeão da Volta da França que foi banido do esporte e perdeu todos os títulos conquistados desde 1998 pela utilização de eritropoietina e esteroides. Fruto de um trabalho de investigação e de inteligência, o episódio foi uma grande vitória para a Agência Mundial Antidoping (Wada, na sigla em inglês), segundo o químico Francisco Radler, chefe do Laboratório de Controle de Doping da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ladetec/UFRJ). “A criação da entidade, em 1999, marcou uma virada decisiva no controle do doping, antes realizado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) de forma muito pontual”, avalia.

O caso de Armstrong é emblemático por revelar a eficiência dos esforços de inteligência aplicados à vigilância: se é difícil coibir toda técnica ilegal desenvolvida, a Wada precisa de mecanismos capazes de identificar que algo de diferente está ocorrendo e que permitam agir rapidamente. “Por isso, ela tem trabalhado em rede com agências nacionais antidoping, grandes laboratórios farmacêuticos e polícias e entidades de controle de fronteiras do mundo todo para identificar o que está circulando de forma ilegal”, explica. “Em outro caso emblemático, atletas norte-americanos que utilizaram anabolizantes de ‘fundo de quintal’ foram identificados em menos de um ano.”

As últimas décadas, aliás, acumularam flagrantes de atletas de destaque internacional e um aumento geral do número de casos de doping. Para se ter uma ideia, quando os testes antidoping começaram a ser realizados, nas Olimpíadas de 1968, apenas um caso foi identificado na competição daquele ano e sete na edição seguinte. Em Atenas (2004) tivemos 25 casos registrados, 21 em Pequim (2008) e 16 em Londres (2012).

Ben Johnson
Após a final dos 100 m rasos na Olimpíada de Seul (1988), o campeão e novo recordista mundial, o canadense Ben Johnson, seria flagrado no antidoping, perdendo a medalha, o recorde e a reputação, em um dos mais conhecidos casos de ‘doping’ da história. (imagem: reprodução)

Para o médico Eduardo Henrique de Rose, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, os números atuais são explicados pelo aprimoramento da própria vigilância. “Por exemplo, agora existe a possibilidade de se preservarem as amostras dos atletas por até oito anos, uma medida paliativa, mas importante”, pondera ele, que é também membro das comissões médicas e científicas do COI e do Comitê Olímpico Brasileiro (COB). “Em casos suspeitos, é possível utilizar novas tecnologias para reanalisá-las, e encontrar falsos negativos.” Nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Londres, por exemplo, metade dos competidores foi testada, inclusive todos os medalhistas, totalizando mais de 6 mil amostras.

Substâncias da moda

O longo histórico de riscos em prol do desempenho começou ainda no século 19, quando competidores utilizavam cafeína, cocaína e outros estimulantes. Nos Jogos Olímpicos de 1904, por exemplo, Thomas Hicks, vencedor da maratona, competiu à base de estricnina (estimulante do sistema nervoso central) e doses de conhaque.

A preocupação com o doping cresceu na década de 1930, com o desenvolvimento dos hormônios sintéticos, mas os testes antidoping só foram introduzidos após a morte de um ciclista dinamarquês nos Jogos de 1960 pelo uso de anfetaminas.

Thomas Hicks
O vencedor da maratona das Olimpíadas de 1904, Thomas Hicks, carregado por seu treinador. O atleta recebeu injeções de estricnina e doses de ‘brandy’ durante a prova para conseguir completar o percurso. (foto: Wikimedia Commons)

Uma defesa comum em casos de doping é a alegação de tratar-se de um acidente, mais ou menos aceitável dependendo do caso, segundo De Rose. “O doping acidental costuma ser maior em países em desenvolvimento, como o Brasil, em função de um nível menor de educação, uso incorreto de suplementos e problemas nas farmácias de manipulação”, avalia. “É claro que um atleta bem informado não usa suplementos de origem duvidosa, então ele é culpado por negligência; mas deveria haver maior fiscalização nessa área.”

Entre os atletas de alto rendimento, no entanto, Francisco Radler é categórico: nenhum desconhece as restrições internacionais – nesses casos, doping involuntário é bem mais raro. “Os fraudadores têm recorrido cada vez mais a substâncias endógenas, também produzidas no organismo, uma ‘desculpa’ caso sejam flagrados”, diz o químico. Segundo De Rose, embora os esteroides anabólicos ainda representem 60% dos casos, as últimas décadas viram crescer o uso de hormônios endógenos, como a testosterona, a eritropoietina e, mais recentemente, o do crescimento, este impossível de detectar pela urina.

Tecnologia: aliada e inimiga

Uma das preocupações para o futuro é que, pela dificuldade de se identificar o uso de proteínas e peptídeos endógenos, o doping genético seja indetectável. “É uma possibilidade que pode ganhar importância à medida que novas terapias genéticas sejam desenvolvidas, para as áreas muscular, cardiovascular e endócrina”, avalia De Rose. “Há possibilidade de detecção, mas os métodos ainda são muito caros e não estão operacionalizados.”

Uma das preocupações para o futuro é que o doping genético seja indetectável

Radler destaca, no entanto, que o esforço internacional dos últimos anos tem afastado essa possibilidade. “O trabalho da Wada e dos laboratórios de controle tem criado um cenário oposto: as práticas genéticas atuais, ao contrário do que se pensava, deixam marcas no organismo por períodos maiores que as proteínas”, explica.

Um dos instrumentos que pode fechar ainda mais o cerco contra o doping é o passaporte biológico. Atualmente utilizado por poucas modalidades, como o tênis e o ciclismo, a ideia do sistema é armazenar informações detalhadas sobre os perfis hematológico, hormonal e endócrino (em breve) dos atletas, a partir de amostras de sangue e urina. Ele funciona como um controle indireto e horizontal: avaliações anuais monitoram de forma continuada o organismo, diferente do emprego de exames que indicam imediatamente o uso de substâncias ilícitas. No futebol, o passaporte já foi utilizado na Copa das Confederações, em 2013, e também estará presente na Copa do Mundo de 2014.

Diego Maradona
Outro caso muito famoso de ‘doping’ envolveu o ex-jogador de futebol argentino Diego Maradona, um dos maiores nomes do esporte de todos os tempos. Ele foi flagrado no antidoping primeiro pelo uso de cocaína e, durante a Copa de 1994, por ter utilizado efedrina, droga proibida usada para emagrecer. (foto: Trevor Pritchard/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

Para De Rose, a medida representa uma quebra de paradigma. “Antes, era necessário encontrar a substância dopante, mas o passaporte biológico permite a aplicação de modelos matemáticos que indiquem o doping a partir das alterações no organismo do atleta, sem a necessidade de individualizar o mecanismo utilizado”, explica.

Para o médico, os altos custos e a falta de laboratórios especializados ainda limitam a utilização do sistema, em especial em países como o Brasil. “Para atletas de alto rendimento, já amostrados regularmente, seu uso pode ser imediato, mas em outros níveis há muitas limitações; existe uma barreira política e econômica, além de científica”, avalia.

Com o avanço tecnológico, que tipo de medida ou tratamento deve ser proibido e o que faz parte do jogo?

A utilização de recursos mais modernos de detecção, no entanto, não resolve uma questão mais fundamental quando o tema é doping: com o avanço tecnológico, que tipo de medida ou tratamento deve ser proibido e o que faz parte do jogo?

Um bom exemplo é o caso da proibição recente do uso do Tratamento para Reposição de Testosterona (TRT) em todos os esportes de luta no estado americano de Nevada, anunciado em fevereiro. A mudança nas regras impediu o brasileiro Vitor Belfort, que faz uso da terapia, de disputar o título dos pesos-médios do Ultimate Fight Championship, luta que seria realizada no estado. 

2016: novidades e reveses

Outra novidade importante no cenário do controle do doping será o novo Código Mundial Antidopagem, que entrará em vigor no ano que vem e será aplicado nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. Entre outras medidas, o novo regulamento prevê o aumento da suspensão em casos de doping intencional de dois para quatro anos. “A tendência é realmente que as punições fiquem mais duras, uma postura dos próprios atletas”, avalia Radler. “Eles exigem maior rigor do que confederações, por isso o discurso de que é ruim para o atleta não cola. Quem é limpo quer mesmo é que as penas sejam rigorosíssimas.”

O químico comenta que, por muito tempo, imperou no Brasil a ideia de que o doping ‘mancha’ o esporte e as federações e confederações tendiam a esconder os casos, com medo de perder medalhistas e patrocinadores. “Isso é fruto de uma mentalidade atrasada e o melhor exemplo é o futebol, em que é realizado desde 1989 no Brasil um trabalho seríssimo de controle de dopagem, do qual o Ladetec é parceiro desde o início”, relembra.

Antidoping
Cada vez mais os exames antidoping fazem parte da rotina dos atletas de alto desempenho. A nova legislação que entra em vigor em 2015 será ainda mais rigorosa com os infratores, mas identificar substâncias proibidas em um campo altamente permeado pela ciência nem sempre é tão simples. (foto: Flickr/ sinanyuzakli – CC BY-NC-ND 2.0)

Para se preparar para as Olimpíadas, o Brasil também criou a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), que promete revolucionar a área no país. “A certeza de que a ABCD pode mudar tudo está na sua concepção: assim como a Wada, ela foi criada sem vícios com federações, confederações, patrocinadores ou atletas”, afirma Radler. “Isso já é ao menos um indício de que a entidade dispõe de isenção para exercer plenamente seu papel.”

Mas nem tudo são flores na preparação brasileira. Em 2013, a Wada descredenciou o Ladetec, única instituição brasileira até então apta a realizar testes antidoping pela entidade, após repetidas falhas de análise em um intervalo de meses. Entre os motivos que parecem ter contribuído para o descredenciamento estão a dificuldade para a entrada de amostras e reagentes no país, as limitações físicas das instalações e a falta de pessoal.

A Agência Mundial Antidoping descredenciou o Ladetec, única instituição brasileira até então apta a realizar testes antidoping pela entidade, após repetidas falhas de análise

Para Radler, chefe do Ladetec, essa era uma “morte anunciada”: o laboratório sofria com a falta de investimento para atender às exigências crescentes desde a criação da Wada. “Quando a Wada tornou-se acreditadora, em 2004, a necessidade de aprimoramento contínuo do laboratório aumentou e nos vimos sem condições de acompanhar o investimento”, explica. “Como nosso país deposita confiança demais no ‘jeitinho brasileiro’, nossas reivindicações sobre a necessidade de investimentos só começaram a ser levadas a sério com a criação da ABCD, mas infelizmente foi tarde demais.”

Agora, o Ladetec vai recomeçar o processo do zero, utilizando uma ‘via rápida’ para conseguir finalizá-lo a tempo de ser confirmado como centro oficial de controle dos Jogos de 2016. Para isso, serão necessárias obras (com a construção de um novo prédio – já em andamento –, em frente à área ocupada pelo antigo no campus da UFRJ na ilha do Fundão) e novas fontes de financiamento, que virão dos ministérios do Esporte e da Educação e Cultura. “Quando houve a desacreditação, aí sim todas as esferas de governo se mobilizaram e agora teremos que fazer em dois anos o que deveria ter sido feito em dez”, lamenta Radler.

Este é o segundo texto da série especial ‘Supermáquinas do esporte’, publicada esta semana na CH On-line. Confira!

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line