Estereótipos mesozoicos

É difícil encontrar alguém que não tenha se impressionado com os enormes e realistas animais do primeiro Parque dos dinossauros, de 1993. Com o quarto filme da franquia, Jurassic World, em produção, talvez a ‘dinomania’ ganhe novo impulso – mas como serão os bichos representados na produção? Enquanto na cultura popular persiste o estereótipo do ‘grande réptil sedento de sangue’, nos últimos 20 anos a paleontologia e a paleoilustração mudaram muito, à luz dos novos conhecimentos sobre esses seres que viveram na era Mesozoica. Além de aproximar os dinossauros das aves, obras como o livro All yesterdays, por exemplo, mostram esses répteis como bichos mais comuns, que dormem, brincam e namoram. Será que filmes como Jurassic World poderão ajudar a popularizar essa nova imagem?

Para o paleoartista Cevdet Mehmet Kosemen, um dos autores de All yesterdays (Todos os ontens, em tradução livre), a representação usual dos dinossauros ainda tende a desconsiderar descobertas científicas recentes, ao contrário do que ocorre na paleoarte. “Hoje sabemos que, além de ter sangue quente, a maioria deles tinha penas ou estruturas similares, visão que ainda não foi disseminada na sociedade, mas já predomina na paleoarte”, afirma Kosemen. Nesse sentido, obras recentes, como All yesterdays e Walking with dinossaurs 3D, e mudanças nos livros didáticos podem impulsionar a visão mais moderna, e um filme do porte de Jurassic World pode ser um divisor de águas. 

Parasaurolophus
Em muitas ilustrações, os fósseis são simplesmente envolvidos com uma camada de pele, mas os dinossauros reais estavam longe de ser sacos de ossos e dentes, como esse trio de ‘Parasaurolophus’. (imagem: John Conway/ All yesterdays)

O paleoartista brasileiro Rodolfo Nogueira lembra que a visão da própria ciência sobre os dinossauros mudou muito desde a descoberta dos primeiros fósseis e acredita que esse tipo de produção ajude a atualizar a sociedade. “Os primeiros paleontólogos viam os dinossauros como seres quase mitológicos, lentos, com pernas de lagarto e sangue frio; depois passaram a vê-los como animais ativos, ágeis e de sangue quente; e só agora descobrimos que a maioria tinha penas”, relembra. “Assim como os livros e o primeiro filme da série Parque dos dinossauros trouxeram uma visão nova para a sociedade, de animais ágeis e inteligentes, torço para que a nova produção faça o mesmo e dê uma verdadeira injeção de conhecimentos atuais sobre os dinossauros.”

Máquinas de matar?

A representação clássica dos dinossauros leva a crer que a pré-história era um mundo cão: afinal, para que tantos dentes, espinhos e garras? Kosemen diz que muitos artistas têm deliberadamente se afastado de representações de situações de confronto, optando por contextos mais ‘cotidianos’. All yesterdays, por exemplo, retrata o Tyrannosaurus rex não como um caçador inveterado, mas como um dorminhoco – abordagem que faz até o dinossauro mais conhecido parecer renovado, acredita ele. 

Nogueira pondera que exaltar o tamanho e a ferocidade dos dinossauros foi natural no passado, já que essas características chamaram a atenção e cativaram a imaginação dos primeiros ilustradores

“Se os predadores atuais só passam parte do tempo caçando, por que os dinossauros seriam diferentes?”, pergunta-se. “Não devemos reduzi-los a ‘monstros’, destacar apenas seu tamanho gigantesco e suas ‘armas’, eles foram tão complexos e únicos como os animais de hoje.”

O livro critica, inclusive, um erro que considera comum na representação da paleoarte: ignorar aspectos que aproximam os dinossauros das espécies atuais. “Por exemplo: eles possuíam tecidos moles, como gordura e cartilagem, não preservados nos fósseis, mas muitas vezes são ‘reconstituídos’ com só uma camada de pele sobre seu esqueleto”, critica Kosemen. “Isso expõe detalhes de seus ossos e dentes, torna-os mais assustadores, mas não é real – basta olhar animais vivos e ver quanta pele, músculos e gordura possuem.” 

Nogueira pondera que exaltar o tamanho e a ferocidade dos dinossauros foi natural no passado, já que essas características chamaram a atenção e cativaram a imaginação dos primeiros ilustradores. “Mas os avanços da pesquisa e da paleoilustração podem trazer os dinossauros dos filmes de terror para algo mais cotidiano, natural e encantador.”

Gato reimaginado
Muitas vezes o exagero em relação ao tamanho e o destaque de ossos, garras e dentes geram monstros pouco realistas. Esse aí poderia ser um gato desenhado por um paleontólogo do futuro que cometesse tal erro. (imagem: John Conway/ All yesterdays)

Nesse sentido, em All yesterdays, os autores propõem um exercício interessante: ilustram animais atuais como se fossem paleoilustradores do futuro, cometendo de propósito os mesmos erros que criticam – o resultado são imagens distorcidas de cisnes, rinocerontes, gatos e outros bichos. “É importante lembrar, no entanto, que até as imagens que consideramos mais corretas hoje podem estar erradas, pois a especulação sempre estará presente no trabalho dos paleoartistas, já que alguns aspectos dos animais extintos jamais serão, de fato, conhecidos”, ressalva Kosemen.

De volta à vida

É certo que os dinossauros de Jurassic World não obedecerão à ‘correção’ requerida de uma paleoilustração, mas Kosemen admite que adoraria ver uma representação moderna em uma produção de tal porte. “É claro que será ótimo se os animais forem representados de forma mais assemelhada a aves, mas creio que o maior diferencial seria ter coragem e talento para descartar sua imagem de monstros”, diz. “Seria ótimo assistir a uma narrativa densa, relacionada a temas maiores da ciência e do mundo contemporâneo.” 

Velociraptor
O quarto filme da série ‘Parque dos Dinossauros’ está em produção. Vinte anos depois do original, como serão as representações dos dinossauros que aparecerão na tela do cinema? (foto: divulgação)

Por isso, ele criticou uma possível sinopse do filme divulgada na imprensa, que fala sobre a construção, por engenharia genética, de uma nova espécie de dinossauro, maior, mais feroz e mais inteligente que as demais. “É uma saída simples; construir um monstro artificial pode atrair o público, mas à custa dos dinossauros mais interessantes que realmente existiram”, lamenta. Nogueira pondera: “Se for confirmada, a ideia rouba um pouco a atenção da paleontologia na obra, mas levanta questões sobre a prepotência humana e a ética científica, que são assuntos já discutidos desde o primeiro filme.” 

Seja como for, o brasileiro destaca o potencial dos dinossauros como chamarizes que permitem abordar assuntos importantes como evolução e extinção. Por isso, vê a nova leva de produções sobre o tema como uma oportunidade de ouro para a divulgação dos conhecimentos mais atuais da paleontologia e de outras áreas da ciência, nas telas ou fora delas. “Certamente os bichos farão grande estrago, mas acredito que a magnificência deles também será explorada.”

 

Criatividade, erros e acertos 
HelicoprionO desafio de ilustrar animais há muito extintos pode ser mais simples, como no caso do mamute, que já teve fósseis bem preservados encontrados, ou enfrentar barreiras quase intransponíveis, como ocorre com os tubarões Helicoprion e seus estranhos dentes em forma de serra. Para Rodolfo Nogueira, no entanto, os paleoartistas têm licença para propor soluções criativas para tais situações, que podem até levantar novas questões de pesquisa. “A ilustração é orientada por pistas fornecidas pelos fósseis e por características de animais atuais, usados como referência para aspectos como musculatura, escamas, penas e cores”, afirma. “Mas a imaginação é fundamental, pois a arte científica tem o papel de explorar as múltiplas hipóteses ainda não comprovadas que a ciência oferece”, conclui.

 

Veja mais representações de animais presentes no livro All yesterdays em nossa galeria de imagens.


Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line/ RJ