Mestra do conto contemporâneo

O escritor Saul Bellow (1915-2005), de origem judia e naturalizado norte-americano, era até o momento a maior glória da literatura canadense. Nascido em Lachine, hoje parte da ilha de Montreal, no Quebec, Bellow foi agraciado com o Nobel de Literatura em 1976.

Nesta quinta-feira (10/10), porém, as luzes voltam a iluminar a cena literária canadense com a premiação da contista Alice Ann Munro, nascida em Wingham, província de Ontário, a 10 de julho de 1931. Considerada uma das principais vozes femininas da literatura de língua inglesa da atualidade, Munro é a décima-terceira mulher a ser agraciada com o Nobel de Literatura.

Esta é a primeira vez que a Academia Sueca reconhece a obra de um autor que escreve apenas contos

Na história do prêmio, que começou a ser destinado em 1901, esta é a primeira vez que a Academia Sueca reconhece a obra de um autor que escreve apenas contos. Além do título, que será entregue em Estocolmo no dia 10 de dezembro, Munro irá receber 8 milhões de coroas suecas (cerca de 3 milhões de reais).

Filha de uma família de gente simples, Alice Munro começou a estudar jornalismo e língua inglesa na Universidade Werstern Ontario. Mas suspendeu os estudos para se casar em 1951, com James Munro, que ela conheceu na universidade. Com o marido, abriu uma livraria em Victoria, na Colúmbia Britânica. O casal, que se separou em 1972, teve três filhas. Alice casou-se novamente em 1976, com Gerald Fremlin, falecido em abril deste ano.

Embora escrevesse desde a adolescência e já tivesse publicado textos em várias revistas literárias desde o início da década de 1950, o primeiro trabalho de fôlego – a coletânea de histórias Dance of the happy shades [Dança das sombras felizes] – só seria publicado em 1968, quando ela já estava a caminho dos 40 anos. A obra recebeu considerável atenção em seu país.

Em 1971, publicou Lives of girls and women [Vidas de meninas e mulheres], coletânea de histórias entrelaçadas (formando o que se poderia chamar de romance) considerada pela crítica como obra de formação. Nesse tipo de obra, o autor expõe de modo pormenorizado o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social e político de um personagem, da infância à maturidade.

Cartaz do filme ‘Longe dela’
Cartaz do filme ‘Longe dela’, inspirado em livro de Alice Munro. (imagem: divulgação)

Munro se tornou conhecida por seus contos, reunidos em várias coletâneas. Entre elas, destacam-se Who do you think you are? [Quem você pensa que é?], de 1978, The moons of Jupiter [As luas de Júpiter], de 1982, Runaway [A fugitiva], de 2004, The View from Castle Rock [A vista do castelo], de 2006, e Too much happiness [Felicidade demais], de 2009.

Hateship, Friendship, Courtship, Loveship, Marriage [Ódio, amizade, namoro, amor, casamento], de 2001, deu origem ao filme Away from her [Longe dela], de 2006, dirigido pela canadense Sarah Polley. Seu livro mais recente é Dear life [Querida vida], de 2012.

No Brasil, foram publicadas as coletâneas Ódio, amizade, namoro, amor, casamento (Globo, 2004), A fugitiva (Companhia das Letras, 2006), Felicidade demais (Companhia das Letras, 2010) e O amor de uma boa mulher (Companhia das Letras, 2013).

Tchekhov do Canadá

Munro é mundialmente reconhecida – seus contos já saíram em mais de dez idiomas – por enredos finamente tramados, cujas características principais são a clareza de estilo e a elaboração de um realismo de fundo psicológico.

Suas histórias são frequentemente ambientadas em cidadezinhas do interior, onde a luta por uma existência socialmente aceitável resulta quase sempre em relações deterioradas e em conflitos de natureza moral. Os relatos centram-se em relacionamentos humanos observados pela lente da vida quotidiana.

Por isso alguns críticos a veem como uma espécie de “Tchekhov canadense”, em referência ao escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), cujos contos dão ênfase às fraquezas da condição humana.

Suas histórias são frequentemente ambientadas em cidadezinhas do interior, onde a luta por uma existência socialmente aceitável resulta quase sempre em relações deterioradas e conflitos de natureza moral

Munro reconhece em sua obra a influência de importantes escritoras norte-americanas, como Katherine Anne Porter, Flannery O’Connor, Carson McCullers e Eudora Welty. E não esconde sua admiração pelos também norte-americanos James Agee e William Maxwell.

“Se Flannery O’Connor e Eudora Welty centram boa parte de sua obra no sul dos Estados Unidos, tratando de questões próprias dessa região e de seus habitantes, Alice Munro, por sua vez, dirige o olhar para a região de Ontário, no interior do Canadá”, lembra o professor José Paiva dos Santos, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Por explorar a dimensão psicológica, existencial de personagens femininos, a obra de Munro, segundo Santos, tem sido analisada também na linha de estudos feitos no Brasil sobre a obra de Clarice Lispector.

Doutor em teoria literária e literatura comparada pela Universidade Purdue, nos Estados Unidos, Santos desenvolveu, entre 2005 e 2008, um projeto de pesquisa sobre o tema realismo e ilusão nos contos de Alice Munro.

O que chama a atenção nas narrativas da contista canadense, diz Santos, é o fato de a autora apresentar uma visão aparentemente realista da realidade, mas ao mesmo tempo questionar e subverter essas convenções. “Em seu texto, ela está mais preocupada com a significação pela ausência do que propriamente pela presença de fatos e detalhes.”

Alice Munro não se notabiliza pelas experimentações estéticas em seus contos. Prefere, de acordo com o pesquisador da UFMG, uma escrita clara, direta, objetiva, mais centrada na escrita tradicional.

Santos considera que a obra de Munro é algo negligenciada no meio acadêmico brasileiro. Uma explicação que tem para isso é o fato de ela não erguer bandeiras, nem políticas, nem culturais. Sequer se considera uma feminista no sentido engajado, político do termo. “Por não ser, digamos, ‘de vanguarda’, tem merecido pouca atenção.” Agora, com o Nobel, é provável que a obra ganhe fôlego aqui e mundo afora.

Roberto B. de Carvalho
Ciência Hoje/ PR