Nada transcendental

É possível um computador desenvolver consciência? E transferir a consciência humana para uma máquina? Até que ponto permaneceríamos nós mesmos nesse processo? Poderemos um dia compartilhar uma consciência coletiva? A evolução da inteligência artificial, tema recorrente da ficção, é abordada pela nova produção hollywoodiana Transcendence – a revolução, em cartaz no Brasil. O filme, embora traga ideias interessantes e questionamentos inquietantes, sofre por conta de seu desenvolvimento confuso e vale muito mais pelas possibilidades que deixa de abordar.

Na história, o renomado pesquisador Will Caster (Johnny Depp), um dos maiores especialistas no campo da inteligência artificial, trabalha na construção de uma máquina ‘consciente’, que conjugue capacidade de processamento com a variedade das emoções humanas. Desenganado após uma tentativa de assassinato perpetrada por um grupo extremista que é contra a tecnologia, o pesquisador convence sua esposa Evelyn (Rebecca Hall) e seu melhor amigo Max Waters (Paul Bettany), também pesquisadores da área, a testar seu novo invento nele mesmo, ‘unindo’ sua consciência à da máquina.

Caster, Turing e Ela

O filme chega ao Brasil num momento curioso: no início do mês, houve muito estardalhaço sobre o primeiro computador que teria passado no teste de Turing – uma ‘prova’ proposta pelo matemático inglês Alan Turing em que programas devem se passar por humanos e enganar um grupo de jurados. O episódio foi cercado de polêmica, já que o chatbot Eugene teve que enganar apenas 30% do júri numa conversa em inglês de aproximadamente 5 minutos, via chat – e ainda fingindo ser um jovem estrangeiro, com todas as limitações de conversação derivadas desse fato contando a favor do bot.

Será que um dia chegaremos a ter os debates éticos que Transcendence levanta?

A máquina/homem Caster é infinitamente mais avançada do que Eugene, é claro, mas o paralelo entre realidade e ficção é interessante. Ainda mais se considerarmos as dúvidas levantadas em alguns momentos do filme sobre quem está realmente no controle: uma versão deturpada da consciência de Caster ou a máquina consciente se passando por ele? Será que um dia chegaremos a ter os debates éticos que Transcendence levanta?

Apesar de serem filmes completamente diferentes, a proximidade temática também torna impossível não traçar paralelos entre a nova produção e um dos grandes sucessos de 2013, Ela. No filme do ano passado, temos uma inteligência totalmente artificial, mas absurdamente humana, agradável, apaixonante, sensível ao ponto de embarcar numa jornada de ‘autoconhecimento’. Em Transcendence, pelo contrário, a personalidade humana de Caster parece perder força para a objetividade da máquina, conforme se transforma num ‘deus’ cibernético. 

Inconsistente

O maior problema do filme talvez seja transformar uma história que poderia ser densa em algo raso, amarrado por um roteiro fraco. Vale o aviso: a partir daqui, cuidado com os spoilers – continue por sua conta e risco caso ainda não tenha visto o filme e não queira saber mais detalhes da trama.

Então vamos lá: depois de escapar dos extremistas, a então máquina/homem Caster orienta Evelyn a criar um supercomplexo científico no interior dos Estados Unidos, que servirá de ‘abrigo’ para sua consciência. Com o passar dos anos, Caster avança décadas em relação ao conhecimento humano, apesar de manter inexplicavelmente todo esse novo conjunto de informações produzidas no subterrâneo do laboratório.

Cena do filme Transcendence
Na trama de ‘Transcendence’, quando um renomado e desenganado pesquisador da área da inteligência artificial transfere sua consciência para uma máquina, ele transforma-se num ser pós-humano, capaz de determinar o futuro da humanidade. (foto: Divulgação)

Nesse ponto, outro paralelo interessante pode ser feito com o último conto do livro Eu, robô, intitulado ‘O conflito evitável’, de Isaac Asimov. Nele, a Terra é administrada por quatro ‘máquinas’, com capacidade de previsão e raciocínio muito superior à humana e que ditam a logística de produção e emprego da mão de obra. Esse controle total é apenas uma perspectiva em Transcendence, porém muito menos sutil – em especial quando a ideia de transcendência, proposta como uma consciência coletiva conectada, é simplificada no clichê de um exército de ‘zumbis’ tecnológicos controlados por Caster.

Por um lado, a nanotecnologia e as células-tronco são tratadas como pó de pirlimpimpim científico. Por outro, a faceta on-line da máquina, que permitiria acesso a amplos recursos, é pouco explorada

A relação nada problematizada dos cientistas e do governo com o grupo extremista responsável por dezenas de mortes (de cientistas) é destaque negativo do roteiro, mas talvez seu maior problema seja a falta de limites claros dos ‘poderes’ de Caster. Por um lado, a nanotecnologia e as células-tronco são tratadas como pó de pirlimpimpim científico: possibilitam tudo, de ‘desintegrar’ armas a regenerar estruturas em instantes. Por outro, a faceta on-line da máquina, que permitiria acesso a amplos recursos, é pouco explorada.

Com nanossensores (nanorobôs?) espalhados pelo mundo, Caster pode ‘sentir’ a natureza, mas não o ataque iminente ao laboratório? Por que não usa arsenais militares para se proteger? E ele seria de fato tão vulnerável à destruição de um campo de painéis solares ou à ação de um vírus e não teria sistemas de segurança e backups espalhados pelo mundo?

Pouca inteligência, muito artificial

A premissa de Transcendence é fascinante e, apesar de não ser assim tão original, renderia uma bela ficção científica – por isso é uma pena observar a falta de cuidado com a trama, que vai perdendo o rumo após algumas boas escolhas iniciais. A atuação apática de Deep (mais uma em sua carreira recente) e a um tanto acima do tom de Kate Mara, como a líder terrorista Bree, também não ajudam a criar o clima que a produção mereceria.

Por tudo isso, Transcendence tem muito pouco de revolução, mas pode ser uma boa pedida para pensar sobre as questões e possibilidades que levanta. No entanto, talvez valha mais a pena reler ou rever os velhos clássicos do gênero, em casa.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line