Poluição oceânica: um panorama

Se perguntássemos a um cientista “Como anda a saúde dos oceanos?”, sua resposta seria provavelmente lamuriosa.

De fato. Diante da indagação, o biólogo Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), classificou como “moribundo” o estado de nossos mares. “Os oceanos não estão exatamente mortos”, disse ele. “Mas não estão totalmente vivos.”

Hoje, não há praticamente nenhuma região oceânica que não tenha sido negativamente impactada pela ação antrópica – são conclusões de um estudo publicado na Science em 2008.

Confira a visualização em vídeo do ‘Mapa global do impacto antrópico nos ecossistemas marinhos’. Em tons de amarelo e vermelho, estão as zonas mais degradadas.

No mesmo ano, também na Science, foi divulgado outro trabalho, que relatou a existência de 400 zonas marinhas mortas em todo o globo. Zonas mortas são aquelas nas quais há excesso de nutrientes e matéria orgânica – e a proliferação de algas atinge níveis elevadíssimos. Elas morrem; e bactérias que as consomem multiplicam-se exponencialmente, demandando cada vez mais oxigênio e assim exaurindo as possibilidades de vida naquelas águas.

A origem desse temível quadro não é mistério: nutrientes em demasia oriundos de esgoto urbano e também de rios poluídos por fertilizantes agrícolas.

Mancha no litoral brasileiro
No final de janeiro, a agência espacial norte-americana identificou, por imagens de satélite, uma mancha escura margeando o litoral do Brasil. Possível explicação: crescimento anormal de algas naquele trecho de nossa costa. (imagem: Nasa)

Temos, ainda, o problema dos resíduos sólidos: cedo ou tarde, toda a tralha de nossa civilização há de parar em algum oceano. E tamanha é a variedade dessas tranqueiras. “Micro-ondas, sofá, lâmpada, cachorro morto, fezes; é tudo que você pode imaginar”, conta Turra.

Reflexos de um mundo subdesenvolvido

Normalmente as pessoas se sensibilizam com a imensa quantidade de plástico à deriva nos mares. “Mas os resíduos sólidos, embora causem sérios prejuízos ao ambiente marinho, não são a raiz do problema”, ressalva o pesquisador da USP. “Eles são indicadores que mostram o grau de comprometimento ou descaso das políticas de saneamento e gerenciamento costeiro praticadas no continente.”

“Maior incidência de lixo marinho é vista em regiões pobres e desprovidas de serviços públicos”, aponta o biólogo. Países desenvolvidos já têm métodos eficazes para equacionar o problema. Mas o mundo em desenvolvimento ainda engatinha – em graus variados de fracasso ou sucesso.

Não é novidade, mas talvez seja necessário remoer o argumento óbvio: nos países ainda ‘emergentes’, o quadro de poluição oceânica tem sua gênese quase sempre na precariedade do saneamento básico. “Nas palafitas da Baixada Santista, sequer há coleta adequada de lixo”, exemplifica Turra. “Em geral, no Brasil, os problemas socioeconômicos são muito mal gerenciados pelos municípios costeiros.” Quem acaba pagando a conta são os oceanos.

Gerenciamento tupiniquim

“No Brasil, temos todos os instrumentos legais necessários para um bom gerenciamento de nossos mares”, diz o pesquisador. “Mas quase nada, efetivamente, é colocado em prática.” O biólogo dá um exemplo contundente: o país possui, há 25 anos, um Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro – que jamais foi implementado a contento. “É uma lei sancionada, mas na prática sua implementação deixa a desejar.”

Turra: “No Brasil, temos todos os instrumentos legais necessários para um bom gerenciamento de nossos mares. Mas quase nada, efetivamente, é colocado em prática”

Foi esse, aliás, o tom da declaração final do evento Oceanos e Sociedade 2013, realizado recentemente na USP. “Após mais de duas décadas, o zoneamento ecológico-econômico marinho previsto na lei só foi aplicado de fato no litoral norte de São Paulo e na Baixada Santista”, lamenta o biólogo. Trata-se de um instrumento jurídico da maior importância – pois prevê a implementação de políticas de zoneamento com base nas quais o uso e a exploração dos territórios marítimos torna-se eficiente e racional. Recursos naturais, potencial turístico, políticas de ocupação… São alguns dos itens contemplados no plano.

Mas, para que o projeto seja replicado em todo o país, de quem devemos cobrar ações? “Do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e da própria Presidência da República”, responde Turra. “Aliás, sabe quantas pessoas existem no MMA para implementar essa política em todo o litoral brasileiro?”, cutuca o pesquisador. Resposta: cinco. São cinco cabeças para pensar e gerenciar mais de oito mil quilômetros de litoral. A título de curiosidade, os estadunidenses mantêm, nos quadros da Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera (NOAA), mais de mil profissionais dedicados à mesma tarefa.

Poluentes silenciosos

Poucos desconfiariam. Mas, além dos problemas clássicos de saneamento, existe uma categoria insuspeita de resíduos sólidos que acometem os mares. São os chamados microplásticos.

Imagine que você acabou de sair de uma lavanderia, onde encomendou a lavagem de suas roupas. Durante o processo, fragmentos de fibras desprendem-se dos tecidos. “Poliéster, náilon, poliuretano, enfim, vários polímeros e fibras sintéticas fazem parte de nossas vestimentas”, explica Turra. O que nem sempre lembramos é que todos esses minúsculos fragmentos – modernamente chamados de microplásticos – também estarão destinados a viajar pelas vias de esgoto. Nossas estações de tratamento, porém, não foram arquitetadas para dar conta desses resíduos. Fatalmente, eles encerrarão sua trajetória nos mares.

“Quanto menor, pior”, ensina Turra sobre os resíduos plásticos. Pois mais organismos poderão ingerir esses pequenos elementos. Resultado: alterações fisiológicas e desequilíbrios diversos nos seres e ecossistemas marinhos.

Microplásticos
Microplásticos usados em cosméticos são importante fonte de contaminação dos oceanos e podem causar alterações fisiológicas e desequilíbrios diversos nos organismos e ecossistemas marinhos. (imagens: Liv Ascer)

Em tempo: há outra fonte de microplásticos da qual poucos poderiam suspeitar. São os cosméticos, notadamente os esfoliantes – aqueles produtos que, segundo a publicidade, são itens indispensáveis de bem-estar e estética. “Microesferas de polietileno, com cerca de 600 microns, são empregadas em uma infinidade de itens com propriedades esfoliantes, que vão desde sabonetes e cremes para a pele até cremes dentais”, exemplifica a oceanógrafa Juliana Ivar do Sul, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esses pequenos polímeros, da mesma forma que as fibras têxteis, seguirão a trilha do esgoto até que, no oceano, encontrarão seu destino final.

A principal fonte de microplásticos, entretanto, não são os cosméticos, e sim as grandes quantias de plástico convencional usualmente lançadas aos mares. “Com o tempo, esse material se deteriora nos oceanos e produz fragmentos cada vez menores”, explica Turra. Na verdade, tudo que um dia foi “macroplástico” acabará, fatalmente, tornando-se microplástico.

 

Além do horizonte
Das ilhas oceânicas brasileiras, Trindade (ES) é a mais distante. São 1.160 km a oeste de nossa costa. É surpreendente, pois, saber que naquelas praias remotas foi encontrada generosa abundância de microplásticos. É o que revelam os estudos de Juliana Ivar do Sul.
Entre 2011 e 2013, ela organizou quatro expedições científicas. E, das amostras que coletou em Trindade, 90% estavam contaminadas por microplásticos. Situação preocupante foi constatada também em Abrolhos (BA), em Fernando de Noronha (PE) e no Arquipélago de São Pedro e São Paulo (PE). São dados inéditos. E os resultados finais da pesquisa serão apresentados em maio na UFPE.
Atualmente, a comunidade científica sabe que ficam no oceano Pacífico os mais graves focos desse tipo de contaminação. No Atlântico Sul, entretanto, pesquisadores ainda dão os primeiros passos para quantificar e entender a disseminação dos micropoluentes.

 

Oceanos hipocondríacos

Também os medicamentos têm sido reportados como graves poluentes a ameaçar a saúde de nossos mares. Anticoncepcionais, antidepressivos, numerosos hormônios…

“Excretamos na urina substâncias presentes nos remédios que ingerimos; mas as estações de tratamento de esgoto não têm tecnologia para dar conta desse tipo de rejeito também”, contextualiza Turra. Desses resíduos, despejados esgoto afora, muitos são classificados como interferentes endócrinos – isto é, provocam danos no sistema hormonal dos organismos com os quais eventualmente terão contato.

Também os medicamentos têm sido reportados como graves poluentes a ameaçar a saúde de nossos mares

Essa classe de poluentes – os contaminantes endócrinos – tem dado alguma dor de cabeça para os cientistas. Não só para os que se preocupam com a saúde dos oceanos, mas para os que estudam a qualidade da água potável que abastece nossas próprias casas. Interferentes endócrinos estão cada vez mais presentes nos sistemas de abastecimento das cidades brasileiras.

Retorno aos clássicos

É claro que, em se tratando de oceanos, são recorrentes as críticas à indústria da pesca – que, com exímia desenvoltura, tem exercido papel notório na predação da biodiversidade marinha de norte a sul.

Igualmente tradicionais são preocupações acerca da exploração de óleo e gás, um dos setores industriais mais pujantes de nosso tempo. “Embora essa indústria seja bastante monitorada, a atividade ainda é muito impactante para os ecossistemas marinhos”, analisa Turra.

Esse cenário diversificado de poluentes deve se refletir na primeira grande avaliação global dos oceanos, capitaneada pela Organização das Nações Unidas (ONU). A ideia foi gestada em 2002, durante a Rio+10, e só recentemente saiu do papel. Os resultados devem ser divulgados em dezembro deste ano. “Trata-se de uma metodologia global para avaliar a qualidade dos mares”, explana Turra. Com ela, todos os países que integram a ONU terão um sistema unificado de avaliação. Será algo inédito para a ciência.

Pesquisadores apostam que, com a bem-vinda iniciativa, medidas mais embasadas poderão ser propostas para conservação e remediação dos quadros ambientais observados nos ambientes marinhos. “É uma proposta muito completa”, comemora o biólogo da USP. Mas, segundo ele, o resultado não será animador. “Após lançados os novos critérios de avaliação, provavelmente teremos um panorama crítico.” Talvez seja um bom momento para colocar os oceanos no cerne da agenda política do cenário global.

Mar de Recife
Mar de Recife (PE). Segundo o biólogo da USP Alexander Turra, a saúde dos oceanos não está das melhores e a tendência é piorar. (foto: Henrique Kugler)

Falando em diagnóstico, recente edição da revista Nature apresentou uma espécie de índice de saúde dos oceanos – atribuindo notas de 0 a 100 para cada país analisado. Dezenas de variáveis socioambientais foram levadas em conta. E o Brasil ficou com nota 66. A média mundial foi 60 – o que indica que talvez não estejamos tão mal assim. Os piores índices (próximos de 36) foram verificados na África Ocidental, no Oriente Médio e na América Central. E os melhores (acima de 86), na Escandinávia, na Austrália e no Japão. O dado preocupante, na verdade, é que apenas 5% das nações atingiram nota maior que 70.

Linha d’água
A pergunta pode parecer ingênua, mas… Para que servem os oceanos? Além de valiosa fonte de alimento para a civilização, são reguladores climáticos do planeta. Outra utilidade prática dos ecossistemas marinhos, como manguezais e recifes, está na proteção das zonas costeiras. Essas estruturas abrigam o continente e protegem-no de eventos extremos do clima – como, por exemplo, tempestades e tsunamis. E, é claro, oceanos são também prestigiadas áreas de lazer. “São importantes para o bem-estar humano e devem ser tratados com mais distinção”, advoga Turra. Uma sociedade que condena seus mares, diz ele, dá um tiro no próprio pé.

 

Este é o sexto e último texto da série ‘Oceanos envenenados’, publicada esta semana na CH On-line. Confira!

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
A ideia de realizar a avaliação global dos oceanos foi gestada em 2002, durante a Rio+10, e não em 1992, como informado anteriormente. (18/02/2014)