Visão de novos mundos

Células sanguíneas, bactérias, espermatozoides. A invenção do microscópio, no século 17, abriu os olhos da ciência para um novo mundo de escalas minúsculas. Quatro séculos depois, três pesquisadores provocaram uma nova revolução com o desenvolvimento da microscopia fluorescente de super-resolução, que permitiu enxergar realidades infinitamente menores, nanométricas. Por isso, os norte-americanos Eric Betzig e William Moerner e o romeno naturalizado alemão Stefan Hell são os laureados deste ano com o Nobel de Química.

Até o trabalho dos três, acreditava-se que não era possível desenvolver um microscópio com resolução melhor do que 0,2 micrômetros, o que acabaria com a possibilidade de enxergar vírus e proteínas. No entanto, usando moléculas fluorescentes, os pesquisadores mostraram ser possível ultrapassar esse limite.

Gehlen: “Graças a eles, hoje laboratórios de todo o mundo conseguem visualizar sistemas biológicos em alta resolução, ver partículas dentro das células, sinapses entre neurônios e proteínas envolvidas em doenças”

“Graças a eles, hoje laboratórios de todo o mundo conseguem visualizar sistemas biológicos em alta resolução, conseguimos ver partículas dentro das células, as sinapses entre os neurônios e o comportamento de proteínas envolvidas em doenças como as de Alzheimer e Parkinson, além de moléculas de polímeros e outros materiais”, destaca o químico Marcelo Henrique Gehlen, do laboratório de microscopia fluorescente da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos.

Enxergar esses mundos nanométricos começou a se tornar realidade com o trabalho de Stefan Hell. Quando ainda era estudante de doutorado na Universidade de Heidelberg, na Alemanha, na década de 1990, ele se interessou pela técnica de microscopia fluorescente, que usa anticorpos brilhantes para facilitar a visualização de pequenas proteínas.

Esse processo permite, por exemplo, ver partes específicas do DNA. Para isso, os cientistas jogam uma luz pulsada sobre anticorpos específicos que se encaixam nas proteínas do material genético, fazendo-os brilhar. Quando os anticorpos se atrelam ao DNA, eles conseguem identificar onde as proteínas de interesse estão.

Com essa técnica, os cientistas conseguiam ver onde determinada molécula estava, mas não podiam enxergá-la diretamente. Hell se empenhou em aprimorar o processo. Usando feixes de luz que cobrissem áreas nanométricas, ele acreditava ser possível enxergar partes menores das moléculas.

Em 2000, o cientista conseguiu atingir seu objetivo. Ele criou o método batizado de ‘microscopia confocal com super-resolução óptica com depleção via emissão estimulada’ (STED, na sigla em inglês).

Microscopia STED
A microscopia STED gera imagens de alta resolução com o uso de dois raios lasers. (adaptação de imagem de Johan Jarnestad/ The Royal Swedish Academy of Sciences)

A técnica usa dois raios lasers: um simula fluorescência em partes minúsculas da molécula analisada e o outro cancela a fluorescência do entorno. Os raios escaneiam nanômetro por nanômetro do objeto investigado. As imagens de cada nanômetro são reunidas em computador e, assim, se obtém uma imagem geral de alta resolução.

Molécula a molécula

Alguns anos depois, surgiu outro método de microscopia nanométrica também de alta resolução – a microscopia de molécula única –, cujas bases foram fundadas por Eric Betzig e William Moerner.

Em 1997, Moerner, então na Universidade da Califórnia (EUA), trabalhava com Roger Tsien, que, em 2008, ganharia o Nobel de Química por descobrir a proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês). Essa proteína pode ser acoplada a outras moléculas para facilitar a sua localização.

Moerner descobriu que uma variante da GFP podia ter seu brilho ‘ligado’ e ‘desligado’ quando exposta a feixes de luz. Com isso, o cientista mostrou que era possível controlar a fluorescência de uma molécula individualmente.

Em 2005, Eric Betzig, que tinha estudado o tema por anos, mas estava afastado da comunidade científica, também percebeu, por diferentes vias, que proteínas fluorescentes poderiam ser ativadas e desativadas conforme desejado. Um ano depois, o pesquisador usou essa ideia para desenvolver o novo método de nanoscopia chamado de microscopia de molécula única.

Nesse método, os cientistas acoplam as proteínas fluorescentes na molécula que desejam observar e lançam sobre ela um feixe de luz fraco que ativa o brilho das proteínas. A luz não acende todas as proteínas de uma vez, mas apenas algumas de cada vez. O processo é repetido e as imagens geradas em cada etapa são sobrepostas para formar a imagem final completa.

Microscopia de molécula única
A microscopia de molécula única sobrepõe imagens nítidas para obter uma imagem de alta resolução. (adaptação de imagem de Johan Jarnestad/ The Royal Swedish Academy of Sciences)

“Funciona como uma filmadora, vários frames ou fotos são tirados e juntos formam uma imagem”, explica Gehlen. “Cada foto mostra de 20 a 30 proteínas fluorescentes e o processo é repetido milhares de vezes até se obter uma imagem total que é o somatório de todas tiradas.”

O pesquisador da USP explica que a microscopia é feita assim, em etapas, para gerar uma imagem mais nítida. Se fosse usada uma luz forte, capaz de acender todas as proteínas fluorescentes de uma vez, o brilho delas causaria interferência e a imagem resultante sairia borrada. 

Cada vez mais potentes

Hoje, a nanoscopia desenvolvida pelos laureados é amplamente utilizada em todo o mundo. Eles próprios a utilizam para as mais diversas pesquisas. Hell usa a técnica para estudar os neurônios e entender as sinapses. Moerner tem estudado proteínas envolvidas na doença neurodegenativa de Huntington e Betzig tem analisado a divisão celular de embriões.

Hell: “Eu tenho a impressão de que a nanoscopia ainda não chegou ao fim e enxergaremos ainda mais detalhes e teremos imagens muito mais nítidas em um futuro próximo”

As técnicas vencedoras podem ainda ter sua resolução aumentada nos próximos anos. No mês passado, Gehlen esteve em Berlin em um congresso sobre microscopia de molécula única com a participação de Hell, hoje diretor do Instituto Max Planck de Biofísica. O pesquisador brasileiro conta que na ocasião o laureado apresentou resultados recentes de aprimoramentos de sua técnica que vão permitir gerar vídeos de resolução nanométrica em tempo real.

“Eu tenho a impressão de que a nanoscopia ainda não chegou ao fim e enxergaremos ainda mais detalhes e teremos imagens muito mais nítidas em um futuro próximo”, disse Hell e um vídeo recente de seu centro de pesquisa.

Hell, Betzig e Moerner vão dividir igualmente o prêmio de 8 mil coroas suecas, ou cerca de 2,5 milhões de reais. Moerner recebeu a notícia de que era um dos laureados nesta manhã, quando se preparava para dar uma palestra no 3º Workshop Internacional sobre Fundamentos da Interação Luz-Matéria, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mas, para infelicidade dos participantes, a palestra não aconteceu.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line