Cinema de guerrilha (ambiental)

Cinema de guerrilha
Mar de sangue na ‘enseada secreta’. Local onde se massacram os golfinhos em Taiji, Japão (Foto: Reprodução).

Depois do podcast de ontem, da capa da CH das Crianças de março e do filme a que assistimos, chegamos a uma conclusão: na redação, este é o mês dos cetáceos – grupo de mamíferos marinhos que inclui baleias e golfinhos.

Por isso, resolvemos não deixar passar a oportunidade de falar do The cove aqui no blogue: o longa-metragem vencedor do Oscar de melhor documentário em 2010 [cove, em inglês, significa tanto ‘enseada’ quanto ‘esconderijo’].

O filme é sobre a matança e exploração de golfinhos no Japão, sobretudo em Taiji, pequena cidade costeira do país. A história começa com o diretor norte-americano Louie Psihoyos indo ao encontro do ativista ambiental Ric O’Barry, em Taiji. Louie, que por muito tempo mergulhou e filmou o fundo do mar para canais de TV como a National Geographic, fica impressionado com a história que Ric lhe conta. Segundo o ativista, a pequena cidade é responsável pelo maior massacre de golfinhos do mundo. Anualmente, segundo os números fornecidos por Ric, morrem 23 mil golfinhos no Japão. A maioria, assassinada em Taiji.

The cove divide-se em três módulos claros: o primeiro é a apresentação. O convencimento do espectador de que a causa é importante. Uma enxurrada de números, imagens; histórias que mostram como existe uma indústria milionária de parques e cativeiros que se valem dos golfinhos. O principal inimigo, claro, é o Sea World

O outro momento – e talvez seja esta a parte mais interessante do documentário – é a apresentação do personagem-estopim de toda aventura em Taiji. Ric O’Barry, além de aparentemente um ativista quase obsessivo, é também o treinador que ensinou ao famoso golfinho do seriado Flipper todos os truques que aparecem na TV. Ou seja, por conta de Ric, os golfinhos viraram febre em todo o mundo e passaram a incluir a chamada ‘fauna carismática’ (que tem no panda o seu baluarte).

“Passei 10 anos erguendo a indústria [de golfinhos]. E estou há 35 tentando derrubá-la”

Ric discorre também sobre o momento em que se deu conta de que o que fazia não era lá muito agradável para os golfinhos. Mantê-los em cativeiro significa induzi-los a uma condição depressiva, que muitas vezes os leva à morte. Segundo o ativista, Cathy, golfinho que fazia o papel de Flipper, morreu em seus braços, no que ele chama de suicídio. Suicídio porque os golfinhos, diferentemente dos humanos, têm um sistema respiratório menos intuitivo e mais racional – ou seja, cada respiração é ‘pensada’ de modo voluntário. Assim, o golfinho teria a opção de parar de respirar quando sentisse que a vida não valia mais a pena. Foi, segundo Ric, o que Cathy fez.

Desde esse episódio, Ric tomou para si a missão de proteger a vida dos golfinhos e libertar do cativeiro qualquer animal que estivesse em perigo. Foi assim que chegou a Taiji. E chegou na cidade guiado pelo seguinte lema: “Passei 10 anos erguendo a indústria [de golfinhos]. E estou há 35 tentando derrubá-la”.

Assista ao trailer (em inglês) de The cove

 

O último momento do documentário é construído quase aos moldes de filme de ação. Junta-se uma superequipe de cientistas, mergulhadores, câmeras etc. para criar uma estratégia que possibilite instalar câmeras escondidas no local da matança. Isso porque, como a fita mostra, só é possível assistir ao aprisionamento dos golfinhos que são selecionados para os parques. O local da matança dos demais – a tal ‘enseada secreta’ – é de quase impossível acesso. Daí a ação à Onze homens e um segredo que o diretor tenta operar. E consegue.

A matança dos golfinhos é rudimentar e fria. A água fica vermelha-sangue. E não tem como contestar as imagens. O governo do Japão, que alega ter desenvolvido técnicas para que os golfinhos não sofram durante o abatimento, fica sem argumento diante do que se vê. O filme ainda apresenta dados de que a carne de golfinho é vendida em supermercados como se fosse de baleia. Assim como mostra números sobre os níveis de mercúrio na carne dos golfinhos, com previsões catastróficas para quem se alimenta dela. E continua, com dezenas de argumentos, sobre a vilania dos japoneses – em especial, os que vivem em Taiji.

Será que os maus são tão maus e os bons são tão bons?

O pecado de The cove está justamente nessa bipolarização. Uma guerra fria (ou nem tão fria assim) onde os bons são ótimos e os maus, terríveis. Maniqueísmo que, para um olhar um pouco mais atento, assusta. E sugere a pergunta óbvia: será que os maus são tão maus e os bons são tão bons? Vira panfleto, vira filme panfletário. Como é a maioria dos filmes pró-natureza.

Não precisava ser assim. Golfinhos são simpáticos demais, ‘sorridentes’ demais, as imagens do massacre são fortes demais; é o caso realmente de pensar na força da imagem em detrimento das palavras. Não é necessário ridicularizar entrevistados com a falta de classe de um Michael Moore. Não é necessário estetizar a desgraça como um Al Gore. Falta ao filme justamente o que sobra aos golfinhos (ao menos, quando eles estão nadando em liberdade): delicadeza.


Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line