Cultura cantada

 

Não há quem não saiba cantar um bom samba, ou pelo menos o seu refrão. Para explicar como essas canções que vivem na boca do povo se estruturam e são essenciais à compreensão e valorização da cultura brasileira, o pesquisador Ricardo José Duff Azevedo decidiu estudar o tema no doutorado em teoria literária e literatura comparada. Batizada “Abençoado e danado do samba”, sua tese foi defendida em 2004 na Universidade de São Paulo (USP).

null

Roda de samba com o grupo Candongueiro em Niterói (RJ). Fotos: Charlotte Quémy.

Azevedo tomou como base de sua pesquisa um acervo de 7 mil letras de samba e traçou um paralelo delas com letras de canções do tropicalismo. O estudo supõe a convivência, no Brasil, de diferentes modelos de consciência construídos socialmente ‐ ou padrões culturais, éticos, estéticos etc. que interagem em um mesmo contexto ‐ e enfatiza a análise do discurso oral que caracteriza as formas literárias populares, das quais o samba é um dos principais representantes. “Infelizmente, poucos estudos abordam as implicações da oralidade nos discursos”, lamenta o pesquisador. ”Isso é paradoxal num país marcado pelo analfabetismo e, portanto, pela cultura oral.”

 
Segundo o autor, a escolha do tropicalismo como contraponto foi feita porque, embora esse movimento influencie muitos gêneros modernos da música brasileira, ele não tem impacto sobre o samba. Ricardo Azevedo chegou à conclusão de que a elaboração das letras das canções tropicalistas segue um modelo baseado na cultura escrita, no individualismo, na secularização, no discurso científico e na escolarização. Já as letras de samba são concebidas a partir de um modelo enraizado na cultura oral, na vida coletiva, na religiosidade, no apego às hierarquias e ao senso comum. Por recorrer a recursos como vocabulário público, refrões, frases feitas e temas capazes de gerar grande identificação, os sambas seriam compreendidos de imediato, memorizados com facilidade e cantados por todos. Já as músicas modernas buscam o estranhamento, exigem leitura, reflexão e interpretação textual ‐ talvez por isso sejam menos acessíveis às camadas populares.
 
Outro fator indispensável para que o samba seja tão compartilhado é a presença de temas recorrentes em suas letras, desde o começo do século 20. “Existem grandes semelhanças temáticas e de procedimentos com a palavra entre uma letra de samba de 1930 e as de Zeca Pagodinho ou Monarco criadas hoje”, avalia Azevedo. “Trata-se de um processo construtivo diferente daquele valorizado pela modernidade, não existe aquela necessidade quase mecânica de novidade.”
A comparação de letras de samba da primeira metade do século 20
(esquerda) e atuais (direita) permite identificar temáticas recorrentes:
 
Fui louco
Resolvi tomar juízo
A idade vem chegando e é preciso
Se eu choro
Meu sentimento é profundo
Ter perdido a mocidade na orgia
Maior desgosto do mundo

“Fui louco” (Noel Rosa e Bide, 1933) Eu tive minha mocidade
Hoje sou um senhor de idade
Conheci sofrimento e dor
Amigos também já tive bastante
Não me largavam um instante
Quando tudo corria bem

“Deslize da vida” (Argemiro do Patrocínio e Francisco Santana, 2002) Eu tiro o domingo para descansar
Mas não descansei
Que tolo fui eu
Regressei do futebol
Todo queimado de sol
O Flamengo perdeu
Pro Botafogo
Amanhã vou trabalhar
Meu patrão é vascaíno
E de mim vai zombar
“E o juiz apitou” (Antonio Almeida e Wilson Batista, 1942) Benza Deus
A comadre Mary Lu
Que já fez muita faxina
Pra gente grã-fina
Lá da Zona Sul
Lá da Zona Sul
Ganhou cacareco pra chuchu
Hoje ela é empresária
Tem brechó na área de Nova Iguaçu

“Mary Lu” (Barbeirinho do
Jacarezinho, Luiz Grande
e Marcos Diniz, 1998)
Não apenas o envelhecimento e o trabalho, dos quais tratam os trechos de sambas reproduzidos acima, mas também a família, a religiosidade, a camaradagem, a comida e a morte, entre outros, são temas bem comuns aos sambas de diferentes épocas. O autor esclarece que esses assuntos estão presentes no cotidiano de todos. Assim, geram identificação imediata, continuam fazendo sentido na atualidade e tornam-se “populares”. O estudo indica que esses temas tendem a desaparecer do discurso moderno.
Além de pesquisador, Ricardo Azevedo é escritor e ilustrador de literatura infanto-juvenil há 25 anos, e sempre se empenhou em elaborar linguagens compreensíveis para um grande número de pessoas. Há mais de uma década passou a se dedicar ao estudo do discurso popular. O autor pretende submeter a uma editora uma versão reduzida de sua tese para publicá-la na forma de livro.


Lia Brum
Ciência Hoje On-line 
13/04/05