Físicos brasileiros fizeram a primeira medida experimental de uma grandeza que poderá ser ferramenta útil para acelerar o desenvolvimento dos computadores quânticos, dispositivos ultravelozes que prometem deglutir, em segundos, tarefas que poderiam durar até bilhões de anos para o mais possante dos equipamentos atuais.

A grande extensão da estrada (ainda em construção) que leva aos computadores ultravelozes – ou quânticos – está pavimentada de artigos sobre um dos fenômenos mais estranhos da natureza, que lembra um tipo de comunicação ‘telepática’.

Denominado emaranhamento, o fenômeno permite que duas partículas ou átomos, se nesse estado especial (ou seja, emaranhados), troquem informação instantaneamente. E não importa se separados por milímetros ou trilhões de quilômetros. Estranho? Assim é o mundo das dimensões subatômicas.

Já foi dito nesta seção que a analogia mais semelhante ao emaranhamento é o vodu: espeta-se um boneco aqui, e a vítima sente a agulhada ‘instantaneamente’, mesmo que esteja em outro continente (alerta: antes que alguém reclame de abusos na analogia, a comparação é de um físico renomado e pensador perspicaz do assunto, John Polkinghorne).

No jargão da física, diz-se que dois objetos emaranhados estão correlacionados. Para entender isso, basta visualizar uma lâmpada e um interruptor. Razão de esses dois objetos estarem correlacionados: tendo informação sobre um, inferimos informações (propriedades) do outro.

Exemplo: se a lâmpada estiver acesa, podemos dizer, com boa segurança, que o interruptor está ligado (e nem precisaríamos ver o interruptor); se o interruptor estiver desligado, poderemos inferir que o ambiente estará sem luz, sem estar nele. Mas essa forma de correlação é dita clássica, por envolver objetos macroscópicos.

Enjoado ao extremo

O emaranhamento é o alicerce da ultracapacidade de processamento dos computadores quânticos, pois permite processar grande número de tarefas simultaneamente.

O problema é que o fenômeno é enjoado ao extremo: duas entidades quânticas emaranhadas (núcleos, elétrons, fótons etc.) devem ser mantidas a temperaturas baixíssimas e (bem pior) praticamente isoladas do ambiente, pois a mínima interferência destrói essa ‘ligação’. Ou seja, tarefa complexa e que demanda energia – acrescente-se dinheiro, paciência e habilidade experimental.

E se fosse possível medir a correlação entre dois objetos quânticos sem que se precise emaranhá-los, mantendo-os à temperatura ambiente? – note, leitor, que agora se trata de correlações no mundo atômico e subatômico; portanto, quânticas.

E se fosse possível medir a correlação entre dois objetos quânticos sem que se precise emaranhá-los, mantendo-os à temperatura ambiente?

Os físicos têm nome para esse tipo de grandeza, ou seja, aquela que indica o quão quântica são as correlações entre duas entidades do mundo atômico ou subatômico: discórdia, grandeza de nome esquisito (até inapropriado) introduzida teoricamente em 2000. No caso da lâmpada e do interruptor, a discórdia seria nula, pois estaríamos no mundo macroscópico, dito clássico.

Nos últimos anos, a literatura especializada se avoluma em artigos teóricos sobre o assunto. Mas como medir a discórdia experimentalmente?

Com anestésico

Aqui entram nove físicos de quatro instituições brasileiras: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (RJ), Universidade Federal do ABC (SP), Instituto de Física de São Carlos (SP) e Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ).

Para medir a discórdia, eles trabalharam, à temperatura ambiente, com a molécula de clorofórmio (líquido com propriedades anestésicas), que contém um átomo de carbono, um de hidrogênio e três de cloro – o carbono, no caso, era, por imposição do instrumento usado no experimento, de um tipo especial, com seis prótons e sete nêutrons no núcleo.

O interesse aqui recai sobre os átomos (mais especificamente, os núcleos) de carbono e de hidrogênio. Primeiramente, com técnicas especiais, a equipe mostrou que esses dois núcleos não estavam emaranhados – ou seja, não estavam ‘ligados’ por aquele fenômeno que já foi classificado como fantasmagórico pelo físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955).

Aí veio a parte crucial: mostraram que era possível medir correlações entre duas propriedades – no caso spin, que pode ser imaginado como a rotação do núcleo – entre o carbono e o hidrogênio, como se um fosse a lâmpada e o outro o interruptor. Ou seja, tendo informação sobre um, inferem-se propriedades do outro.

Laboratório de Ressonância Magnética Nuclear dp CBPF
Laboratório de Ressonância Magnética Nuclear do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, onde foi feito o experimento sobre discórdia. (foto: Roberto Sarthour/ CBPF)

O ‘gol’ do artigo, na definição de um dos autores, é que o trabalho oferece, pela primeira vez, um método prático para medir correlações quânticas, ou seja, para medir a discórdia.

Por que isso é importante? Porque abre a possibilidade de usar átomos à temperatura ambiente para o desenvolvimento de computadores quânticos e outras promessas da área de informação quântica, como a criptografia quântica, que gera códigos 100% invioláveis.

As características tanto da discórdia quanto do emaranhamento são úteis para o processamento de informação por um computador quântico

As características tanto da discórdia quanto do emaranhamento são úteis para o processamento de informação por um computador quântico. No entanto, sistemas não emaranhados dotados de discórdia têm a vantagem de serem mais robustos à ação do meio externo.

O trabalho traz uma característica que aos poucos vem crescendo na física do Brasil: o experimento idealizado e realizado no país. Os resultados mereceram publicação na prestigiosa Physical Review Letters (PRL, como é conhecida).

Em tempo: esta seção recebeu a notícia de que o mesmo grupo já está emplacando o segundo artigo na PRL.

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje On-line

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