Uma análise da insanidade e crueldade dos imperadores romanos à luz da literatura, constatando que, nas mãos dos déspotas, o lado mau e abjeto da ficção pode se tornar realidade.

 

Aristóteles,na Poética, livro que até hoje serve de norte para os estudos da arte da representação, deixa muito clara a principal diferença entre o historiador e o poeta. Diz o filósofo que o historiador é aquele que conta os fatos como de fato aconteceram, ao passo que o poeta os conta como poderiam ter acontecido de acordo com as leis da verossimilhança e da necessidade. Para ele, a poesia é muito mais nobre e filosófica do que a história, porque tendo ela um caráter universal é capaz de dialogar com todo e qualquer tempo histórico. Além disso, a poesia tem a liberdade de criar e de propor outras realidades, como fizeram os poetas gregos quando criaram o universo dos deuses mitológicos.

Muito embora os gregos “acreditassem” nos seus deuses, como nos informa Paul Veyne, eles tinham consciência das diferenças e dos limites entre realidade histórica e mítica, tanto que parece não haver nenhum registro histórico de, por exemplo, um casamento realizado entre um ser humano grego e um deus do Olimpo, ou, ainda, que os deuses andassem pelas vielas da Grécia antiga discursando para a plebe. Todas as histórias em torno dessa realidade são míticas, são ficções, são miméticas. Acontece que o mesmo não podemos dizer dos romanos, em particular ao que diz respeito aos enlouquecidos e perversos imperadores, cuja crueldade e concupiscência não tinham limites.

Enquanto os poetas cantavam, contavam e representavam as narrativas míticas, em forma de épica, tragédia ou comédia, para as mais diversas plateias, os devassos e cruéis imperadores se apoderavam dessas representações artísticas para, muito mais do que entorpecer o povo, incutir-lhes sentimentos de pavor e de obediência. O que era realizado em forma de exuberantes e sangrentos espetáculos encenados nos circos e coliseu romanos, onde as vítimas, ou seja, os condenados pelo imperador, eram obrigadas a encarnar personagens que tinham finais trágicos e cruéis.

Há vários registros históricos sobre esses espetáculos.No entanto, como nossa pretensão é o diálogo entre poesia e história, utilizaremos o testemunho do poeta latino Marco Valério Marcial que viveu em Roma, patrocinado por imperadores, dos anos 60 ao final dos anos 90 antes da nossa era. Muito do que ele produziu foi perdido, mas o Livro dos Espetáculos (Epigrammaton Liber), que acabou por se juntar aos documentos históricos encontrados, ficou como testemunho dessas encenações sangrentas.

O tal livro é constituído de epigramas, forma poética que em sua origem designava as inscrições em túmulos, em estátuas, em monumentos, medalhas etc., mas que, com o passar dos tempos, cristalizou-se como forma literária que funcionava como instantâneos do cotidiano, que tanto poderiam louvar personalidades do poder, quanto ridicularizá-las. E Marcial foi um dos principais representantes desse gênero.

Por ocasião da inauguração do Anfiteatro Flávio, mais tarde denominado Coliseu, o imperador Tito se encarregou de oferecer ao povo os mais grandiosos, variados e cruéis espetáculos, também conhecidos como jogos ou Mimos, que incluíam a encenação de fábulas mitológicas, pantomimas e toda sorte de maravilhas. Tudo com o intuito primeiro de agradar ao próprio imperador. Esses jogos, segundo o depoimento de antigos historiadores, tiveram a duração de cem dias, ocasião em que foram abatidos em torno de cinco mil animais selvagens, fora a carnificina humana. Parte desses jogos podemos constatar em uma das epigramas do Livro dos Espetáculos:

“Acreditem que Pasífae se uniu ao touro de Dicte.
Vimo-lo— e a velha fábula ganhou autoridade.
De si não pasme, César, a vetusta antiguidade:
Tudo quanto a fama canta, para ti a arena reproduz.”

Essa epigrama oferecido a Tito (que também era denominado César, como quase todos os imperadores), narra uma das versões da história de Pasífae, mulher de Minos, que se apaixonou por um touro e não mediu esforços para juntar-se a ele. Essa paixão monstruosa resultou do castigo que Poseidon deu ao seu marido pelo fato de Minos não ter cumprido a promessa de sacrificar o touro em homenagem ao deus. Perdidamente apaixonada, Pasífae implorou ajuda ao engenhoso Dédalo, que construiu uma vaca para que a moça pudesse entrar nela e enganar o touro. O engenho ficou tão semelhante a uma vaca de carne e osso que o animal foi enganado e acabou copulando com Pasífae.

Nessa epigrama, o poeta destaca que a fábula ganhou autoridade, pois foi vista por todos, assim como deixou de ser apenas uma mímese, uma ficção, para se tronar dura realidade diante dos olhos perversos do imperador, que, como também contam os antigos historiadores, obrigou a uma infeliz condenada a se colocar em uma engenhoca de madeira para ser estuprada na arena por um touro selvagem, enquanto a plateia ia ao delírio.

Outro espetáculo também testemunhado por Marcial é a condenação de Lauréolo, um ladrão escolhido para representar o mito de Prometeu diante de todos. O infeliz foi pendurado a uma cruz e teve seu corpo dilacerado por um urso faminto e feroz.

Tal como à cítia fraga agrilhoado, Prometeu
A contumaz ave com seu peito enorme alimentou,
Assim as nuas carnes ao urso caledônio ofereceu
Lauréolo, pendente de uma cruz não falsa.
Viviam ainda os lacerados membros, destilando sangue,
E em todo corpo nada havia já de corpo.
{…}
Com ele, o que havia sido fábula em punição real se volveu.

Além desses, há inúmeros outros exemplos da insanidade e crueldade dos imperadores romanos, mas, por ora, já bastam esses testemunhos de que, nas mãos dos déspotas, o lado mau e abjeto da ficção pode se tornar realidade.Por isso, todo cuidado é pouco.

Georgina Martins

Programa de Mestrado Profissional em Letras (Profletras)
Curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escritora de livros para crianças e jovens

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