A verdade no banco dos réus

Mais atual do que nunca, filme mostra o julgamento de uma historiadora que, para provar sua inocência, precisa comprovar a existência do Holocausto.

“Existem fatos, existem opiniões e existem mentiras.” A frase da pesquisadora Deborah Lipstadt (vivida pela excelente Rachel Weisz) marca e até transcende as questões de Negação (EUA e Reino Unido, 2017). Mais atual do que nunca, filme trata da capacidade humana de negar, intencionalmente ou não, eventos e até fatos.

Passada nos anos 1990, a história mostra o julgamento de Deborah, conceituada historiadora americana que vai parar no banco dos réus acusada de difamar seu colega britânico David Irving (Timothy Spall). O processo se baseia nos argumentos apresentados pela pesquisadora em seu livro Negando o holocausto: o crescente ataque à verdade e à memória, no qual ela critica Irving por pregar a inexistência do holocausto.

Como o processo é aberto na Inglaterra e as leis britânicas preconizam a culpa do réu, Deborah e seus advogados de defesa se veem na árdua tarefa de provar a veracidade da acusação feita no livro e, para tanto, comprovar fatos históricos e extremamente dolorosos negados por Irving.

Esta é a principal questão que o filme, com roteiro de David Hare e direção de Mick Jackson, nos traz: a complexidade em se provar fatos considerados axiomáticos, que já foram por demais discutidos e confirmados. É imediata a conexão com tempos atuais em que precisamos buscar continuamente comprovação de dados e informações científicas para fazer frente a tanta desinformação vigente.

Ao acompanharmos a jornada de Deborah, podemos perceber como é difícil trazer a verdade à luz, principalmente se temos, como opositora, uma pessoa oportunista e populista como Irving.

Importante ressaltar que a negação do holocausto é uma corrente do pensamento que contesta o extermínio de judeus nos territórios ocupados pela Alemanha nazista. Os historiadores que defendem essa teoria argumentam que o holocausto é uma invenção sionista, criada como forma de pressão para a formação do estado de Israel. Parte das justificativas da contestação se baseia nos totais populacionais relativos aos judeus da época, comparados aos números de mortos divulgados.

Para ir além da realidade encenada em Negação, que, apesar do elenco primoroso, peca por apresentar personagens um pouco estereotipados,  convidamos o leitor a assistir também ao TED de Deborah Lipstadt, onde a pesquisadora traz questões interessantes que nos fazem pensar em como é possível negar a ocorrência do genocídio mais documentado da história.

A historiadora também levanta outro ponto instigante: para a teoria da negação do holocausto estar certa, muitas pessoas, inclusive as vítimas e os próprios criminosos confessos, teriam que estar errados. Isso sem falar de inúmeros registros e testemunhos. No entanto, o que mais assusta é a sua frase enfática de que estamos presenciando movimentos que revestem velhos ódios, racismos e preconceitos, com uma capa de racionalismo e academicismo.

Outra questão, atual e bem explorada no filme, é a forma como os meios de comunicação são explorados num caso de grande repercussão, tal qual o julgamento, e como a opinião pública é refém destas estratégias, gerando, inclusive, muitos movimentos sociais, alguns extremistas.

Acima de tudo, um ponto muito importante a ressaltar no filme é a exposição da diferença entre se ter liberdade de expressão e de extrapolar, de forma abusiva, da mesma. Marca assim outro tema fundamental e crítico que é a responsabilização sobre o que é dito. Neste contexto ressalta-se o advogado de defesa de Deborah, representado por Tom Wilkinson, que traz mais brilho para a questão sobre a necessidade de se pensar estratégias que fujam do óbvio para provar o que, de fato, é óbvio.

O filme, portanto, nos dá a oportunidade de refletir sobre questões atualíssimas. Vivemos um período em que fatos e verdades estão sob ataque, e as mídias sociais contribuem muito para tal. Cuidar para que os tênues limites que separam fatos, opiniões e mentiras – como diz Deborah – não sejam confundidos ou, ainda pior, propositalmente manipulados, deve ser uma meta constante. Para isso, não podemos nos deixar ser enganados por aparências racionais. Devemos sempre duvidar, questionar e buscar evidências. Esta luta precisa ser diária, não pode ser postergada!

Carla Madureira Cruz

Departamento de Geografia, Instituto de Geociências
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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