Basta um dia em 1917

Filme que acompanha a jornada de dois soldados durante 24 horas na Primeira Guerra Mundial humaniza a reflexão sobre o conflito e se junta a outros grandes clássicos que retrataram o tema no cinema.

Dono de uma fotografia primorosa, merecidamente ganhadora do Oscar 2020 na categoria, e apresentando ângulos de filmagem que colocam o espectador praticamente dentro da cena, 1917, dirigido pelo britânico Sam Mendes, é daqueles filmes em que não se sente o tempo passar. E o tempo, na história vivida na tela, corresponde à duração de um dia. Um longo e intenso dia, em que dois jovens soldados são levados a cumprir a dificílima missão de cruzar as linhas inimigas para entregar uma mensagem que pode salvar a vida de 1.600 integrantes de tropas do seu mesmo exército. No caminho, enfrentam armadilhas, combates e perigos de toda sorte. Não há descanso nessa jornada, que se passa em 1917, o penúltimo ano da Primeira Grande Guerra (1914-1918).

Ao longo da narrativa cinematográfica, a amizade, o companheirismo e a solidariedade vão surgindo na história e fazem com que, além do clima de tensão, possam aparecer respiros de afetividade, que contribuem para criar uma empatia ainda maior com os personagens principais – praticamente os únicos a terem real densidade no filme.

Trata-se de uma obra que aciona a expectativa e as emoções e que é conduzida de fato por poucos atores. Os personagens secundários ocupam a tela em situações rápidas – isso sem contarmos, evidentemente, as centenas de figurantes nas tropas. A paisagem, quase sempre inóspita, se completa com a presença de construções destruídas, destroços e ruínas, até o filme se aproximar do final, quando a natureza aparece em imagens delicadas, ainda assim sempre interrompidas pela recorrência de morte e dor.

Além da premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, 1917 ganhou o Globo de Ouro como melhor filme de drama, entre outros prêmios. Em termos de produções cinematográficas sobre a Primeira Grande Guerra, veio fazer companhia a outros grandes clássicos que têm como tema esse conflito, entre eles os laureados Nada de novo no front (EUA, 1930), A grande ilusão (França, 1937), Lawrence da Arábia (EUA/Inglaterra, 1962) e Glória feita de sangue (1957). E, como um bom filme de guerra, ao trazer histórias individuais de heroísmo e, ao mesmo tempo, desencanto com a realidade na frente de batalha, humaniza o olhar crítico sobre o conflito.

 

Exércitos de colonizados

A Primeira Guerra Mundial chegou a ser vista por seus contemporâneos como “a guerra para acabar com todas as guerras” (título do livro do escritor britânico H. G. Wells publicado em 1914), mas foi reconhecida pela maior parte dos historiadores como o conflito preparatório para a Segunda Guerra Mundial. Travada na maior parte do tempo em solo europeu, revelou disputas que ocorriam desde fins do século 19 e se relacionavam com a expansão de mercados por áreas coloniais. Nessa guerra, de interesses e impulso europeus, muitos africanos e asiáticos das áreas colonizadas foram convocados a participar e tiveram papel determinante em algumas batalhas, atuando quase sempre na linha de frente e nas situações de maior risco. A França, no pós-guerra, chegou a produzir cartazes de agradecimento aos contingentes africanos que integraram o seu exército.

Há muita pesquisa ainda sendo realizada sobre a Primeira Guerra. Além de documentos escritos, são usadas entrevistas com sobreviventes e imagens de época. Vale lembrar que esse conflito aconteceu pouco depois da invenção do cinema e muito foi gravado no cenário de guerra. Recentemente, o cineasta neozelandês Peter Jackson reuniu filmes mudos de época realizados em campo de batalha, recuperando cenas do cotidiano das trincheiras e trazendo imagens de soldados reais em situações ainda não vistas pelo grande público, e fez o documentário Eles não envelhecerão (EUA/Rússia, 2018).

Para que essa produção – que, diferente de 1917, não se trata de uma ficção – ficasse mais palatável aos espectadores de hoje, algumas intervenções técnicas foram realizadas. O ritmo das películas de época foi tornado mais lento e elas foram colocadas em ordem cronológica. O resultado é comovente e impressionante e, assim como em 1917, evidencia a dimensão humana e pessoal da guerra. Assistir a ambos os filmes permite perceber como a leitura sobre a guerra feita pela ficção quase 100 anos depois se diferencia e se aproxima daquelas cenas protagonizadas por seus personagens reais.

Sobre 1917, ainda que seja um filme em que a violência esteja sempre presente – quando não direta, à espreita –, a obra brinda o espectador, na maior parte do tempo, com a dimensão íntima e solitária da luta dos dois jovens soldados pela sobrevivência, seja a própria ou a de outros. E, no correr do dia em que se desdobram para cumprir sua missão, surge cada vez mais nítida a desilusão com as razões da guerra. Mas, era preciso sobreviver, e salvar.

No ótimo filme 1917, a guerra mostra não ter sentido, assim como na vida real.

Monica Lima

Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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