Batalha de gigantes

As descobertas recentes do bóson de Higgs e das ondas gravitacionais, que deram veracidade a duas grandes teorias físicas, guardam entre si uma grande incompatibilidade. Essa divergênciaocorre desde a construção das bases dessas teorias, há cerca de um século, e reflete um conflito histórico entre célebres cientistas queserviu como motor do desenvolvimento científico.

Duas descobertas recentes da física renderam o Nobel a seus autores: o bóson de Higgs – partícula responsável pela geração de massa no universo – e as ondas gravitacionais – oscilações no ‘pano de fundo’ do universo, identificado como espaço-tempo.

Esses feitos dão veracidade às grandes teorias físicas que os previram: respectivamente, a mecânica quântica, que lida com os fenômenos em dimensões atômicas e subatômicas, e a relatividade geral, teoria que explica a gravitação.

No entanto, há grande incompatibilidade entre elas, um ‘estranhamento’ que remonta a um século atrás, desde a construção de suas bases. Ela simboliza um conflito histórico entre os dois grandes porta-vozes dessas teorias, rememorando outros célebres debates entre renomados cientistas, demonstrando que nem sempre a ciência se constrói por meio de gigantes sobre ombros de outros gigantes, mas também por suas épicas batalhas intelectuais.

Nossa história começa em 1905, quando o célebre físico Albert Einstein (1879-1955) publicou cinco trabalhos que iriam sacudir a comunidade científica.  Um desses artigos ‒ por sinal, não o mais famoso, mas aquele que lhe renderia o Nobel de Física de 1921 ‒ marcaria a gênese de tudo aquilo que ele, ironicamente, tentaria negar, em vão, pelo resto de sua vida. Ao contrário do que pretendia, sua produção intelectual o tornaria um dos maiores contribuidores de seu alvo de objeção: a mecânica quântica.

O cerne daquele trabalho dizia respeito à ressurreição de uma ideia enterrada há dois séculos e proposta por outro gigante: Isaac Newton (1642-1727). Esse físico e matemático britânico defendia que a luz era constituída por corpúsculos. Essa ideia encontrava oposição no holandês Christiaan Huygens (1629-1695), para quem a luz seria uma onda

O britânico Isaac Newton e o holandês Christiaan Huygens  (Crédito: Wikimedia commons)

Essa dicotomia se manteve, até que, em 1801, por meio do histórico experimento da dupla fenda, o polímata britânico Thomas Young (1773-1829) enterrou essa discussão em desfavor de Newton. A natureza ondulatória da luz seria reforçada por outro luminar, o escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), cujas equações mostrariam que a luz é uma onda eletromagnética. Ponto para Huygens.

No experimento da dupla fenda, a luz, ao incidir sobre duas aberturas muito próximas e estreitas, segue em direção a um anteparo. Huygens observou que, nesse anteparo, se formava uma chamada figura de interferência, com máximos e mínimos de intensidade luminosa, alternando, em franjas, presença e ausência de luz.

Isso é resultado do fenômeno da interferência – característico da natureza ondulatória da luz – e acontece porque uma onda, ao atravessar as duas aberturas, se divide em duas frentes. Por sua vez, as ondas resultantes interferem entre si, ora construtivamente (máximos), ora destrutivamente (mínimos), semelhantemente à queda de duas pedras em uma piscina com água parada, formando duas ondas que se ‘misturam’, ou seja, interferem

Em A, figura de difração (vista frontal). Em B, experimento da dupla fenda (vista superior) Crédito: Wikimedia commons

Newton ressurge

Entre 1886 e 1887, o físico alemão Heinrich Hertz (1857-1894) observou um fenômeno que se manteve inexplicável até o artigo laureado de Einstein – o efeito fotoelétrico. A física da época previa que qualquer frequência (cor) de luz era capaz de arrancar elétrons de um metal, desde que a intensidade (energia) de luz fosse grande o suficiente.

Porém, é observado que luz de frequências mais baixas (por exemplo, de amarela a vermelha), mesmo a altas intensidades, demonstra-se incapaz de arrancar elétrons do metal, enquanto as de frequências mais altas (isto é, de azul até violeta) são capazes de arrancá-los, até com menor intensidade de incidência dos raios luminosos.

Esse problema foi resolvido por Einstein, que propôs que cada elétron não poderia absorver qualquer quantidade de energia, mas apenas um pacote mínimo, chamado quantum de luz – ideia herdada do físico alemão Max Planck (1858-1947). Assim, um quantum de frequência mais baixa (por exemplo, vermelho) não teria energia suficiente para arrancar um elétron do metal. Como este não é capaz de absorver mais de um quantum, bombardear o elétron com dois quanta, mesmo trazendo o dobro de energia, não faria diferença, pois ele não absorveria o segundo fóton. Já um quantum de frequência mais alta (por exemplo, violeta) é mais energético e, portanto, capaz de arrancar o elétron do material.

Podemos comparar a energia luminosa à chuva, em que aquela pode estar relacionada à quantidade de gotas que batem no chão, em analogia direta ao número de fótons incidindo sobre o material. Ou pode estar relacionada com a velocidade ou força com que cada gota atinge o solo isoladamente, de modo similar ao quantum de luz de menor frequência (menos energético) ou de maior frequência (mais energético).

Portanto, um quantum de luz foi identificado como a mínima quantidade possível de radiação, que dependia apenas da frequência da luz, fornecendo um aspecto granular à radiação eletromagnética. Não foi muito difícil concebê-lo como uma partícula de luz, sem massa – logo em seguida, batizada de fóton. Einstein devolveu o ponto para Newton.

Espectro de frequência e energia da luz visível e suas cores.
(Créditos: Cedido pelos autores)

Einstein versus Bohr

Em 1924, o físico francês Louis de Broglie (1892-1987), em sua tese de doutorado, propôs uma ideia ousada: a matéria também teria propriedades ondulatórias, e sugeriu o mesmo experimento da dupla fenda realizado por Young, só que usando elétrons. Três anos depois, físicos nos EUA e no Reino Unido observaram a difração de elétrons, corroborando a proposta de De Broglie, demonstrando o comportamento ondulatório da matéria.

Em 1926, Erwin Schrödinger (1887-1961) propôs uma equação que descreve os novos fenômenos ondulatórios observados na matéria. Essa equação ‒ que, hoje, tem o nome desse físico austríaco ‒ é tida como marco inicial da mecânica quântica.

Mas, afinal, a luz é onda ou partícula? Quem estaria certo: Newton ou Huygens? O martelo sobre esses questionamentos foi batido pelo físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), protagonista da chamada ‘Escola de Copenhague’, formada por um grupo de estudiosos que forneceram a interpretação ortodoxa para os fenômenos da mecânica quântica – embora existam outras interpretações alternativas.

Para explicar a interpretação de Copenhague, voltemos ao experimento da dupla fenda: os elétrons que atravessam as fendas vão, aos poucos, colidindo com o anteparo. À medida que as colisões vão acontecendo, seu rastro vai se acumulando. Como resultado, observa-se que vão sendo configuradas regiões muito atingidas (máximos), passando por regiões menos atingidas, até mesmo regiões completamente ausentes de colisões (mínimos), todas elas se alternando em ‘franjas’, demonstrando que houve ali um processo de interferência. A imagem de difração que se forma representa a colisão de inúmeros elétrons que atravessaram as fendas e atingiram o anteparo.

Figura de difração sendo formada pela detecção de elétrons no experimento de dupla fenda
realizado por Akira Tonomura (1989). (Crédito: Wikimedia commons)

Embora essa imagem seja o rastro da colisão de muitos elétrons, ela, por isso mesmo, representa também a probabilidade de um único elétron colidir em qualquer região, possibilitando, então, que o físico polonês Max Born (1882-1970) – outro célebre teórico da escola de Copenhague – interpretasse a onda de Schrödinger como uma onda de probabilidade associada à possibilidade de localização do elétron.

Mas tem como acompanhar o rastro da partícula e, assim, saber por onde ela irá passar? A resposta que Bohr deu para essa questão foi categórica: não! Tentar fazer isso implica mudar as condições do experimento, e, portanto, destruí-lo. Em outras palavras, observar o suposto caminho do elétron implica medir e, nesse caso, medir significa interagir diretamente com o objeto observado, mudando suas condições.

Em analogia, a mesma interpretação era válida para o fóton. Portanto, parecia haver uma correspondência entre a radiação e a matéria. Ambas poderiam ser descritas como onda e como partícula. Onda, pois trata-se de uma descrição probabilística governada por uma função de onda. Partícula, porque a medida do lugar em que o corpo será encontrado é um ponto específico. Bohr, então, com a autoridade de quem realmente entendeu a situação, decretou o empate no conflito entre Newton e Huygens.

Niels Bohr (esq.) e Albert Einstein
(Crédito: Wikimedia commons)

Essa visão probabilística da natureza – em que a mesma nos impõe um limite fundamental das informações que podemos obter sobre os fenômenos físicos – pôs em xeque a ideia determinista de que tudo pode ser previsto (passado, presente e futuro) desde que tenhamos todas as informações necessárias acerca do fenômeno em um determinado instante, bem como todas as leis que o regem.

A mecânica quântica agora negava isso, postulando que tudo o que podemos obter são probabilidades, não importa o quão apurado sejam nossos aparelhos de medida – e isso abalou as convicções filosóficas de Einstein, um determinista convicto. Ele, a partir de então, dispensou enorme parcela de seus esforços para derrubar a recém-criada teoria, por meio de questionamentos riquíssimos direcionados a seu grande porta-voz, Bohr.

Mas, ao contrário do que pretendia Einstein, ele não só se viu incapaz de refutar a mecânica quântica, mas também forneceu o combustível para Bohr torná-la ainda mais consistente, tornando-se, ironicamente, um dos maiores colaboradores para seu desenvolvimento. Muitos pontos para Bohr!

Round derrotado, Einstein sintetizou sua insatisfação em carta endereçada a Born em sua célebre frase: “Deus não joga dados!”

Traição da primogênita

Por outro lado, a mecânica quântica de Schrödinger havia sido postulada a partir da imposição da conservação clássica da energia. Isso significava que a recém-criada teoria só estava bem definida para baixas energias, isto é, para velocidades muito baixas se comparadas à velocidade da luz (cerca de 300 mil km/s). Nesse limite, a relatividade de Galileu Galilei (1564-1642), base da mecânica newtoniana, é soberana, mas tem uma limitação: trata a possibilidade de os corpos adquirirem qualquer velocidade.

Foi Einstein quem observou – em seu mais famoso trabalho entre os cinco de 1905 – que a natureza impõe um limite superior para a velocidade dos corpos: o da velocidade daluz. Isso, por sua vez, redundou não apenas em uma redefinição de toda a física vigente, mas tambémde nossos conceitos de espaço e tempo. A relatividade de Galileu foi, então, substituída pela teoria da relatividade restrita, de Einstein.

Porém, para o infortúnio de Einstein, esforços foram recrutados no sentido da construção de uma mecânica quântica relativística. Ao transpor a relatividade restrita aos domínios da mecânica quântica, ela foi capaz de explicar tanto a existência de propriedades então inexplicáveis da matéria (por exemplo, o spin) quanto a variedade de partículas existentes na natureza, possibilitando o desenvolvimento do modelo padrão, que descreve três das quatro interações (forças) fundamentais, à exceção da gravidade: eletromagnética (luz), forte (que mantém o núcleo atômico coeso) e fraca (responsável pela radioatividade).

Esse foi um golpe nas convicções de Einstein, usando a sua própria teoria. Match point para a mecânica quântica.Mas o golpe não foi muito elegante… um detalhe estragava a teoria quântica ao incluir a relatividade restrita: infinitos! Apareciam infinitos na teoria. Infinitos nas massas das partículas, infinitos nas energias, infinitos nas cargas, infinitos em tudo. Por ‘sorte’, inventaram um remédio para limpar esses infinitos: a chamada renormalização. Esta consistia em ‘varrê-los’, por meio de uma técnica de redefinição das grandezas físicas, tornando-as finitas.

 

A forra de Einstein

O problema, no entanto, ficou irremediável ao tentar incluir a gravitação nos domínios da mecânica quântica – a gravitação de Einstein, nascida em 1915 e conhecida como teoria da relatividade geral.

Os infinitos que apareciam agora não eram tratáveis – e foi rigorosamente demonstrado ser impossível eliminá-los. Em outras palavras, esses infinitos não são renormalizáveis.

A teoria da relatividade geral, portanto, respondeu pela rejeição de seu criador. Isso resultou em uma catástrofe para o projeto da grande unificação das quatro interações fundamentais na formulação de uma teoria quântica de campos unificada via modelo padrão.

A teoria da relatividade geral não é unificável, sob o ponto de vista do modelo padrão. Einstein teve a sua forra.

 

A batalha continua…

Esse conflito, no entanto, foi transposto para outras gerações de físicos, e o projeto da grande unificação foi passado adiante. De um lado, identificamos aqueles que poderíamos chamar ‘bohrianos’, que mantêm a ideia de que a interação gravitacional seria apenas mais uma entre as quatro interações fundamentais da natureza, devendo ser, portanto, tratada da mesma maneira que as outras três. Para esse grupo, a mecânica quântica deve ser revista e estendida, para incluir a gravitação. A teoria das cordas foi, então, o carro chefe desse grupo para resolver a questão.

Do outro lado, aqueles que podemos chamar ‘einsteinianos’ entendem a relatividade geral como um ingrediente mais fundamental, uma vez que lida com a própria estrutura do espaço-tempo e, portanto, não pode ser concebida como apenas mais uma interação além das outras três. É ela que precisa ser repaginada, para que ofereça o cenário coerente para as outras três interações!

Uma das propostas desse segundo grupo é a chamada loop quantum gravity (gravitação quântica de laço), em que o próprio espaço-tempo é quantizado, concebido como uma espécie de ‘esponja quântica’.

Se a observação do bóson de Higgs – última das partículas elementares do modelo padrão a ser descoberta – deu ponto para os bohrianos, a observação das ondas gravitacionais, fenômeno previsto pela relatividade geral pura, devolveu o empate aos einsteinianos.

A batalha continua…

Gabriel Di Lemos Santiago Lima
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca,
Unidade de Ensino Descentralizada (Nova Iguaçu, RJ)

Lucas Sigaud
Instituto de Física,
Universidade Federal Fluminense

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