Como os brasileiros veem a ciência e os cientistas?

Análise de três décadas de pesquisas de opinião desfaz mitos e traz revelações: população diz estar tão interessada em ciência quanto por esporte, mas pouquíssimos conseguem citar o nome de um pesquisador brasileiro ou de uma instituição.

 

A celebrada antropóloga norte-americana Margaret Mead (1901-1978) coletou, nos anos 1950, centenas de desenhos de crianças, de diversos países, sobre o satélite artificial soviético Sputnik, a bomba atômica, e, sobretudo, a figura do cientista. Confirmou o que muitos presumiam: a representação popular dos cientistas não era boa. Carregada de estereótipos, mostrava os pesquisadores como afastados da sociedade, estranhos e, eventualmente, perigosos. Mead descobriu que quase ninguém sequer gostaria de se casar, ou que um filho se casasse, com cientistas. Foi com esse triste retrato que surgiram os primeiros indicadores de percepção pública da ciência.

As pesquisas de Mead foram motivadas pelo forte impacto na opinião pública dos Estados Unidos do lançamento do Sputnik e do bombardeio atômico às cidades de Hiroshima e Nagasaki. Mas, hoje, tais estudos são feitos constantemente em quase todos os países, inclusive por aqui.


Bombas atômicas, Sputnik e a percepção pública da ciência

Uma esfera de alumínio, menor em diâmetro que uma bola de futebol, causou um terremoto na opinião pública mundial e na política. Era 4 de outubro de 1957 quando o satélite soviético Sputnik entrou em órbita ao redor da Terra. Ficou lá por menos de três meses, para finalmente desintegrar-se na atmosfera. Não continha instrumentos científicos ou militares relevantes, fora um transmissor, que emitia um bipe captado por milhares de emocionados radioamadores na Terra. Mas gerou um imenso impacto nos Estados Unidos, abrindo não somente a corrida espacial, capítulo importante da Guerra Fria, mas iniciando um movimento pró-ciência, que incluiu uma onda de estudos para saber como funciona e o que influencia o interesse e a opinião das pessoas sobre ciência.
Mais de dez anos antes, outra crise abalou a imagem pública da ciência. A trágica ruptura histórica causada pelos massacres atômicos de Hiroshima e Nagasaki havia deixado um legado bem mais pesado na opinião pública mundial. Como declarou, Robert Oppenheimer, diretor do Projeto Manhattan, após o lançamento das bombas os físicos “conheceram o pecado”, sentiram a “íntima responsabilidade por ter sugerido, apoiado e, em grande medida, conseguido a realização das armas nucleares”. As visões da ciência como produtora de conhecimento puro, a idealização do progresso científico como sinônimo de avanço moral e bem-estar material precisavam ser repensadas. Para cientistas e políticos parecia cada vez mais importante estudar as visões do público, resgatar a confiança na ciência, motivar nos jovens o interesse por carreiras científicas e tecnológicas.

No Brasil, a primeira pesquisa nacional sobre opinião da população com respeito a ciência e tecnologia ocorreu em 1987, mas foi seguida de um hiato de quase 20 anos em que só houve levantamentos regionais ou sobre temas específicos. Em 2006, 2010 e 2015, foram feitas novas enquetes por todo o país, por iniciativa do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação (nome atual) em parceria com outras entidades, como o Centro de Gestão e Assuntos Estratégicos, na mais recente. A partir desses dados podemos ter uma ideia do que brasileiros e brasileiras pensam sobre o assunto, e como isso mudou em 30 anos.

 

Visão não depende só da escolaridade

E quais são as descobertas principais? Na minha opinião, duas são mais importantes: a primeira é que, apesar do escasso – e extraordinariamente desigual – acesso ao conhecimento científico, os brasileiros são fãs da ciência e, em grande medida, entusiastas das tecnologias. Em segundo lugar, percebemos que as atitudes sobre ciência, sejam eufóricas ou cautelosas, não dependem somente do conhecimento em ciências ou do hábito de informar-se. No caso do relacionamento dos brasileiros com a ciência, o senso comum ditando que “ignorância gera medo” precisa ser repensado.

 

Pouco informados, bastante interessados

Esses 30 anos de enquetes nacionais nos permitem confirmar, antes de tudo, um fato já conhecido a partir de pesquisas em outras áreas: a violenta desigualdade de oportunidades e acesso ao conhecimento. Menos de um cidadão em cada 10 diz se lembrar do nome de algum cientista brasileiro (entre os mais citados, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Miguel Nicolelis, Vital Brazil, Santos Dumont e Cesar Lattes). Só 13% se recordam de alguma instituição que faça pesquisa científica (entre as mais citadas, Fiocruz, Embrapa, Instituto Butantan, USP, IBGE). Entre pessoas de baixa escolaridade, tal percentual se aproxima de zero, mas muitos com ensino superior também não conseguem citar qualquer instituição ou cientista.

É um dado paradoxal. Em um país onde todo cidadão diz que a educação é importante, onde tanto aqueles que estudaram numa universidade como os que não o fizeram percebem o prestígio dessas instituições e, frequentemente, conhecem o nome das principais em sua região, entidades de pesquisa celebradas ou nossas maiores universidades não são lembradas ao se perguntar sobre ciência. Parecem estar associadas, na mente de muitos, ao ensino e à formação, mas não tanto à ciência e à pesquisa.

Tais dados são coerentes com indicadores da área de educação e com outros dados dessas enquetes, por exemplo sobre a frequência a locais de difusão da cultura, como museus, jardins botânicos e bibliotecas. A visitação dos brasileiros a esses lugares aumentou nos últimos anos, graças a investimentos e políticas públicas, mas ainda é pequena se comparada aos índices de outros países. Reflete sobretudo a desigualdade: pessoas de baixa renda e escolaridade frequentam menos tais espaços.

Uma antiga hipótese, um pouco ingênua, mas ainda presente no senso comum, é que o escasso conhecimento é fruto direto da suposta falta de interesse dos brasileiros, e que, portanto, se conseguíssemos “intrigar”, “cativar” mais os cidadãos, a familiaridade com a ciência aumentaria. Muitos editores, jornalistas, cientistas ou políticos ainda hoje estão convencidos de que os brasileiros, em sua maioria, não têm interesse por temas de cunho científico ou tecnológico. Pois essa convicção é, ao menos em parte, falha: nem sempre a falta de informação se deve à falta de percepção da relevância de um tema; e os dados demonstram que, no Brasil, somos, sim, interessados nesses assuntos.

Dados das enquetes feitas ao longo de 30 anos confirmam: os brasileiros se declaram interessados em C&T, em média, tanto quanto os habitantes da Europa e dos Estados Unidos. Tal interesse cresceu após 1986, entre todos os grupos sociais. E tem mais: os brasileiros tendem a apreciar C&T (em 2015, 61% diziam ser interessados ou muito interessados) tanto quanto o esporte (56%), tema apaixonante para a nação. Também se dizem tão interessados em temas como saúde ou meio ambiente quanto em religião, vivência central para a maioria.

Os interesses dos brasileiros

Otimismo, sem ingenuidade

Outros aspectos que marcam nossa cultura – apontam as pesquisas – são o otimismo em relação ao desenvolvimento da C&T e a visão positiva sobre ciência e cientistas. “Ordem e progresso” não parece ter ficado só em nossa bandeira. A maioria dos brasileiros valoriza os benefícios da C&T, confia nos cientistas como fonte de informação, tem uma imagem em geral positiva do cientista e de suas motivações, além de considerar importante conhecer a ciência e investir em pesquisa.

Os brasileiros, em média, se declaram mais otimistas quanto aos efeitos da C&T do que os cidadãos da maioria dos países europeus. A fração de pessoas que consideram que a ciência e a tecnologia só trazem benefícios para a humanidade está entre as maiores do mundo, e aumentou ao longo das décadas.

A confiança nos cientistas também é elevada. Questionados em quais fontes de informação confiam mais e menos, os brasileiros colocam os políticos como os atores sociais menos confiáveis. No topo da confiabilidade, médicos, cientistas, jornalistas. Ao crescer da escolaridade, confiam mais e mais nos cientistas que trabalham em instituições públicas.

Apesar de muitos cientistas estarem preocupados com movimentos anticiência, no Brasil não podemos dividir a população em um grupo a favor e outro contra“a ciência”. Existem grupos preocupados com alguns aspectos do desenvolvimento tecnológico, mas que, em outros, são interessados em C&T, favoráveis à pesquisa e confiantes na importância da ciência. As pessoas que se declaram abertamente desconfiadas dos cientistas, que enxergam na C&T apenas implicações negativas, ou, ainda, que atribuem aos cientistas motivações egoístas são uma fração bem abaixo de 10%.

Vários indicadores confirmam a imagem positiva de que os cientistas gozam em nossa sociedade. Por exemplo, 44% dizem que uma das motivações do cientista é “contribuir para o avanço do conhecimento”; 39% que é também “solucionar problemas das pessoas”. E em direto contraste com a posição de nossos governantes, a maioria dos cidadãos acredita que, mesmo em momentos de crise econômica, o investimento em C&T deve aumentar.

Tais opiniões não são apenas visões idílicas ou ingênuas de quem nunca parou para pensar nas relações entre o progresso técnico, a pesquisa científica e as dimensões éticas, econômicas e ambientais de nossas ações.


A visão da ciência: múltiplas aplicações

Fazer experimentos sobre como formamos opiniões a favor ou contra determinadas áreas da ciência, descobrir que fatores afetam nossas atitudes ou como adquirimos conhecimento são pontos que interessam a áreas diversas como psicologia social, educação, ciência da comunicação, antropologia, sociologia, dentre outras. Permite investigar aspectos profundos de como funcionam a cultura, a imaginação, a difusão do conhecimento.
As aplicações práticas de tais pesquisas são também importantes. Ao saber quais variáveis afetam o interesse das pessoas por C&T, ou suas atitudes, podemos identificar públicos-alvo específicos, fortalecer a apropriação da cultura científica, fornecer ferramentas para a divulgação científica ou as políticas educacionais. Os dados de percepção permitem construir indicadores de interesse e apropriação social em C&T, que podem ajudar a formular ou avaliar políticas públicas.

Homens e mulheres concordam, em sua maioria, que a pesquisa científica é essencial para indústria, que os governantes deveriam seguir orientações de cientistas, que C&T ajudam na diminuição das desigualdades. Por outro lado, a ciência não é vista como panaceia ou a única fonte dos avanços sociais. Metade da população, aproximadamente, discorda de que C&T possam eliminar pobreza e fome. Muitos também concordam que os desenvolvimentos de C&T podem ser “responsáveis” por problemas ambientais. Metade dos brasileiros acredita que a pesquisa precisa obedecer às regulamentações, e que os cientistas devem ser responsabilizados pelo uso do conhecimento que produzem. Metade defende o princípio de precaução: uma nova tecnologia não deve ser usada se ainda não forem bem conhecidos seus riscos.

Por fim, a maioria da população concorda com uma afirmação forte: “Os cientistas têm conhecimentos que os tornam perigosos”. Tais pessoas, contudo, em geral não negam que os benefícios da ciência sejam maiores que os malefícios, nem possuem uma visão negativa da figura do cientista: não se trata tanto de ser “contra” os cientistas, mas de estarem preocupados com a relação entre desenvolvimento e mercado, democracia, meio ambiente. A maioria dos entrevistados acredita que os cientistas tenham obrigação de expor publicamente os riscos, que a população deva ser ouvida nas grandes decisões sobre C&T, e que é capaz de entender o conhecimento científico se for bem explicado.

Tais preocupações quanto às implicações da ciência não são sinônimo de posturas anticientíficas. Por exemplo, entre os brasileiros que se declaram muito preocupados com temas como mudanças climáticas, agrotóxicos e energia nuclear, são poucos os que expressam visões negativas sobre a ciência: a maioria dos “preocupados” são, aliás, mais informados e interessados em C&T do que os demais.

Opinião sobre C&T: de onde vem?

No Brasil, a ignorância sobre ciência não gera medo. Por outro lado, elevada escolaridade não é sinônimo de visões unicamente positivas sobre C&T. Então, que tipo de fatores contribuem para nossas atitudes? Não sabemos ainda. É um conjunto de elementos que não dependem apenas do acesso à informação ou de escolaridade e renda. Alguns indícios são avaliados: atitudes e interesses podem depender do tipo de posicionamento moral, e do engajamento em atividades sociais e políticas.

Algumas análises e modelos estatísticos mostraram que as pessoas têm mais chances de ter interesse por C&T não somente ao crescer de sua escolaridade, mas, por exemplo, quando possuem interesse em temas ambientais ou algum tipo de engajamento social e político (participam de movimento social, partido, sindicato etc.). Essas pessoas têm menos chances que os demais brasileiros de serem euforicamente otimistas ou puramente pessimistas: tentar resolver problemas concretos, talvez, nos leve a uma visão mais cheia de nuances, menos idealizada, de como funciona a ciência. Visões sobre paridade de gênero também se constituem de forma entrelaçadas com visões sobre ciência: as pessoas menos interessadas em C&T tendem a ser aquelas (poucas) que concordam com afirmações do tipo “os homens são cientistas melhores do que as mulheres”.

São apenas indícios, mas nos levam a uma hipótese: será que as atitudes sobre ciência, interesse, hábitos de buscar (ou não) conhecimento, dependem não só do grau de “alfabetização científica”, mas também de valores, redes de contatos e engajamento na sociedade? Estamos tentando descobrir a resposta. Estamos estudando, como Margaret Mead, desenhos de crianças, fazendo experimentos com jovens para seguir na rede sua busca por informação. Estamos investigando a difusão de boatos, ou, ainda, estudando os comentários dos usuários de sites de ciência… Quem sabe, em breve, os leitores da Ciência Hoje terão uma exclusiva sobre novas descobertas!

As imagens que ilustram este artigo fazem parte do projeto Grafite da Ciência / Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – CBPF.

(créditos: ilustrações Gabi Torres / fotos Luiz Baltar)

Yurij Castelfranchi

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais

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