Desmistificando a genômica

Reflexões a partir do diálogo entre um professor do ensino médio e um jornalista científico com pesquisa na área da genômica.

A genômica é uma ciência jovem. Começou com o Projeto Genoma Humano, que mapeou todos os genes do DNA das células do corpo humano, num trabalho que começou nos anos 1990 e terminou no início dos 2000. Quase 20 anos depois, a genômica e sua mãe, a genética, estão entre as áreas de maior crescimento no mundo. Mas quanto dessa produção científica tem impacto, acessibilidade e compreensão para a sociedade em geral?

Muitas vezes, compreender a ciência não é fácil, mesmo para quem tem uma boa cultura científica. Quando se trata de uma área intrinsecamente complexa como a genômica, as dificuldades podem ser ainda maiores. O importante, no entanto, não é o público em geral se aprofundar, e sim ter uma noção geral do funcionamento, das conquistas, das práticas e dos resultados da genômica – e de outras áreas. Somente assim podemos entender e nos posicionar, com base científica e não apenas opiniões, sobre questões médicas, sanitárias, ambientais e éticas que interferem na sociedade.


O ideal é pensarmos no genoma como um ecossistema, e não como um compartimento isolado ou como um programa de computador

Um basta aos determinismos genéticos

Não precisamos ser especialistas em genômica para termos noção sobre células-tronco, reprodução assistida, biotecnologia etc. Essa é uma batalha que profissionais como professores, cientistas, biólogos, jornalistas que escrevem sobre ciência e outros deveriam assumir. Uma pessoa que não tem clareza sobre a influência dos genes no desenvolvimento de uma característica, dificilmente, vai compreender os efeitos das variações do genoma como um todo sobre um organismo. Segundo o biólogo evolucionista britânico Richard Dawkins em seu livro O gene egoísta, expressões como “gene para pernas compridas” são figuras de linguagem convenientes, mas é importante entender que não existe um gene sozinho que construa uma perna comprida. A construção de uma perna é uma cooperação entre as influências dos genes e do ambiente externo, como alimentação na fase de crescimento. Quais cuidados devemos tomar para não propagar determinismos genéticos, ou seja, que características ou variações no organismo não são explicadas apenas geneticamente?

Esse é um conteúdo que precisa estar em sala de aula para combater o senso comum de que o DNA e o gene determinam tudo. Quem estuda um pouco de genômica vai perceber que os genes atuam em conjunto, podemos encontrar genes com funções diferentes ou o mesmo gene cumprindo funções biológicas diferentes, a depender do contexto que ele for ativado na célula.

Para não propagar essa visão determinista, o ideal é pensarmos no genoma como um ecossistema, e não como um compartimento isolado ou como um programa de computador. Relacionado a isso, há a responsabilidade dos próprios geneticistas e pesquisadores da genômica, os primeiros a usar metáforas como programa de computador, livro da vida e código da vida. Mesmo um código de DNA não produz uma mensagem com um único significado. Apenas em casos raros podem haver defeitos genéticos que produzem uma variação bem específica no organismo, como doença de Huntington e algumas outras síndromes genéticas raras que podem ser causadas por um único gene ou um defeito em um único gene. Mas isso não deve ser o paradigma para todo o restante do fenômeno biológico, como desenvolvimento embrionário, metabolismo ou outras doenças.

 

Equilibrando expectativas

O excesso de expectativa sobre a tecnologia genômica, como se esta fosse logo entregar uma medicina de precisão, individualizada e desprovida de riscos, é outra das visões erroneamente propagadas. Um dos maiores avanços da genômica é a tecnologia de CRISPR (em português: repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas), uma técnica barata e rápida de edição genética, que foi superestimada por muitos pesquisadores como uma revolução científica. É uma aposta futura para terapias genéticas por sua capacidade de deletar, incluir ou modificar sequências de DNA em células vivas ou embriões, mas isso exige um debate profundo sobre ética quando se trata de seres humanos.

 

Fora dos holofotes

Nos últimos anos, a genética e a genômica não têm estado em evidência como no começo dos anos 2000, com a publicação do Genoma Humano, ou, especificamente no Brasil, com o sequenciamento da Xylela fastidiosa, bactéria que causava grave doença dos citros, com grande impacto econômico. Mas, agora, com a pandemia de covid-19, a área voltou a ter destaque no noticiário por conta do sequenciamento do RNA do vírus, o que permitiu conhecê-lo e, assim, possibilitou que o exame genético PCR (cadeia em polimerase) reconhecesse a presença das sequências de RNA do vírus SARS-CoV-2 nas pessoas. A divulgação científica bem feita é uma das formas de disseminar noções realistas sobre genômica.

Mas qual seria o meio de comunicação ideal para tornar o tema acessível a mais pessoas? No vídeo, de modo geral, temos a possibilidade de apresentar as informações de forma visual e dinâmica. Há animações sobre como funciona o DNA, entre outros mecanismos, que são fiéis à realidade. De séries de TV como Genoma – Em busca dos sonhos da ciência (adaptada para YouTube pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo) a novela, como O Clone, é possível disseminar noções de genômica. Quem procura algo mais aprofundado pode buscar livros clássicos, como O oitavo dia da criação, de Horace Freeland Judson, que parte de Gregor Mendel (1822-1884), considerado o pai da genética, até Projeto Genoma Humano, e A dupla hélice, do geneticista norte-americano James Watson, um dos descobridores da estrutura do DNA.

Em quaisquer desses formatos, a cultura científica deveria ser cultivada entre todos, especialmente os tomadores de decisões que afetam a ciência e a vida da população. Desde décadas atrás, o astrofísico e divulgador científico Carl Sagan já alertava que o Congresso Nacional dos Estados Unidos deveria ter políticos que entendessem de ciência e tecnologia ou boas assessorias nessas áreas. Se não for assim, em qualquer nação, todos saem perdendo, inclusive as gerações futuras.

Vinícius Nunes Alves

especialização em jornalismo científico, Labjor/Unicamp

*Artigo resultante de entrevista com o jornalista científico Marcelo Leite, colunista da Folha de S. Paulo e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas.

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