Aplicar dinâmicas de jogos a atividades cotidianas pode, por um lado, aumentar a motivação e a produtividade das pessoas, mas, por outro,pode se tornar instrumento de fuga e dominação.

 

Você já se imaginou dentro de um jogo? Já se equilibrou andando pelo meio-fio, se esforçando para não cair, enquanto imaginava que o chão estava tomado de lava? Já competiu com amigos para ver quem tira a nota mais alta numa prova ou completa determinada atividade primeiro?

Nos últimos anos, tornou-se muito popular a aplicação de algumas mecânicas e dinâmicas de jogos a atividades cotidianas, o que ganhou o nome de ‘gamificação’ (ou gamification). Os estudiosos dessa ferramenta alegam que ela pode ser usada para quase tudo, seja na educação, na saúde, no meio empresarial, seja nas próprias atividades do dia a dia. E os seus benefícios, já demonstrados até mesmo por estudos científicos, podem variar desde um pequeno aumento no engajamento e na motivação das pessoas ao realizarem determinada tarefa até um aumento substancial na eficiência e produtividade delas.

A lógica é simples: imagine que eu quero que as pessoas realizem uma atividade não muito agradável e motivante (como estudar, ou trabalhar, ou lavar louça ou se locomover até um determinado destino etc.). Para que essa atividade se torne uma experiência menos monótona e, consequentemente, motive mais as pessoas a desempenhá-la, eu posso criar um sistema que lhes dê uma pontuação de forma proporcional às suas eficiências. Além disso, a cada montante de pontos que uma pessoa receber, eu determino algumas recompensas que ela ganhará – como um distintivo, um nível acima do que está, um título, etc. À medida que as pessoas vão subindo de nível, elas vão sendo alocadas em um ranking, o que proporcionará competição e incentivará os participantes a aumentarem sua eficiência naquela atividade.

 

Ranking social

A série britânica Black Mirror ilustrou muito bem uma possível aplicação dessa ferramenta em sua terceira temporada, mais especificamente no primeiro episódio, chamado ‘Queda-livre’. Desenvolveu-se uma tecnologia por meio da qual seus usuários podem dar notas uns aos outros (algo similar ao que fazemos em aplicativos de transporte). Quanto maior a nota de uma pessoa, mais benefícios sociais ela tem, como maior facilidade para empréstimos, filas preferenciais, além de possuir também um maior status social. Se a pontuação dessa pessoa vai diminuindo, o seu prestígio social também declina e as outras pessoas vão se afastando dela.

(Crédito: Netflix/Divulgação)

Em contrapartida, um dos grandes problemas da gamificação é que ela elimina o sentido intrínseco daquilo que se está gamificando. Como assim? Quando uma pessoa está fazendo aulas de piano, seu objetivo – que a motiva a se esforçar – é aprender piano e não ganhar um diploma ao final desse processo.

No entanto, muitas vezes transformamos algumas atividades em meros degraus, ou meios, para se chegar a algum lugar. Ou seja, deslocamos nosso objetivo para algo extrínseco à atividade. Assim, estudar deixa de ter um fim em si mesmo e passa a ser um degrau para entrar na faculdade; trabalhar deixa de ser uma atividade-fim e seu objetivo passa a ser ganhar dinheiro; etc.

O mesmo raciocínio, em uma escala maior, vai nos levar à conclusão de que, simplesmente, a finalidade da vida é a morte, como se o viver não fosse justificado por si só. Por isso, condicionar-se a encarar como recompensa coisas que sejam externas a uma ação transforma nossa vida em um eterno subir de escadas, sem linha de chegada.

O sistema de pontuação social do Black Mirror (assim como as pontuações para os motoristas de aplicativos)pode até levar as pessoas a serem mais gentis umas com as outras. No entanto, ao usar como motivação um sistema gamificado de recompensas, que é exterior ao ato de ‘ser gentil’, muitas pessoas, focadas no objetivo de aumentar sua pontuação social, acabam sendo excessivamente gentis, abrindo mão da sinceridade e da autenticidade.

Lógica perversa

Essa ferramenta também pode ser usada como um instrumento de poder. Já imaginou criar um mecanismo que faça as pessoas se sentirem mais realizadas por receber um distintivo virtual, uma nova roupa para seu avatar ou um nível superior do que receber um salário? A defesa de que ‘emoções positivas e recompensas virtuais pagam a falta de sentido da vida e a insatisfação com o próprio trabalho’ é muito perversa.

Se eu estou em um trabalho que não me agrada, em que eu me sinto explorado e não tenho oportunidade de desenvolver minhas potencialidades, eu posso: 1) gamificá-lo, ou seja, me submeter a um mecanismo que dê mais sentido àquilo que estou fazendo, que mascare as minhas insatisfações e me condicione a sentir prazer com recompensas simbólicas; ou 2) simplesmente trocar de trabalho e, de fato, acabar com os problemas que ele me traz.

A gamificação, nessa perspectiva,se parece muito com as pílulas SOMA, em Admirável mundo novo. Na sociedade distópica criada por Aldous Huxley, essas drogas sintéticas são distribuídas pelo governo para manter a população satisfeita, feliz, produtiva e focada no trabalho que deveriam fazer.

Por isso, podemos dizer que transformar nossa vida em um jogo realmente funcionaria, na medida em que nos deixaria mais engajados em determinadas atividades. Mas, por mais que pareça extremamente divertido e motivador viver em um jogo – ou gamificar as coisas chatas da vida, dando esse colorido novo e esse sentido ilusório para compensar a falta de sentido da própria vida ou as dificuldades encontradas dentro do trabalho e da escola –, essa é só mais uma forma de fuga. Ou seja, não vai nos ajudar a resolver nossos problemas e aumentar nossa qualidade de vida.

Lucas Miranda
Editor do blog Ciência Nerd
Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor),
Universidade Estadual de Campinas

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