Jornalista ICH

“Vai passar”, repete algumas vezes o engenheiro florestal Tasso Azevedo, como na canção de Chico Buarque. Para o coordenador do MapBiomas, projeto de mapeamento anual da cobertura e do uso do solo no Brasil, apesar de vivermos o que ele avalia como o pior momento da política ambiental do país nas últimas três décadas, o desmatamento não pode continuar batendo recorde atrás de recorde. “Estamos passando por um período muito ruim, mas não há como isso perdurar por muito tempo. Hoje há essa movimentação de empresas e fundos de investimento. Como diz um amigo, o assunto saiu da coluna de meio ambiente e foi para o caderno de economia. Subiu de patamar a preocupação”. Essa ponta de otimismo não impede Azevedo, também coordenador do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases do Efeito Estufa do Observatório do Clima, de apontar com clareza os atos do governo federal que resultam em enfraquecimento da fiscalização ao desmatamento ilegal e dão a percepção de que, hoje, o crime ambiental compensa.

CIÊNCIA HOJE: Recente relatório do MapBiomas mostrou que 99% do desmatamento no Brasil têm origem ilegal, e que 75% dos responsáveis podem ser identificados. O desmatamento está fora de controle?


É a primeira vez, desde a Constituição de 1988, que o Brasil passa um ano inteiro sem demarcação de terras indígenas

TASSO AZEVEDO: O desmatamento aumentou 30%, em média, em 2019. Em 2020, também está em alta. Desde 2002/2003, não havia um aumento nessa proporção. E por que isso se liga ao desmatamento ser essencialmente ilegal? Ao constatarmos que 99% do desmatamento têm fortes indícios de ilegalidade, mostramos que essa é uma atividade especulativa porque só se faz atividade ilegal se o risco de ser punido for menor do que as possíveis benefícios obtidos. E quais elementos fazem com que exista essa percepção de que o crime compensa? Primeiro, a fiscalização foi enfraquecida: menos recursos para o órgão, o que reduz o número de operações; redução da capacidade de a fiscalização gerar resultado, por exemplo, impedindo a destruição de equipamentos usados no crime ambiental, demitindo quem está na linha de frente da operação etc. O segundo elemento é a questão fundiária: é a primeira vez, desde a Constituição de 1988, que o Brasil passa um ano inteiro sem demarcação de terras indígenas. O presidente diz, explicitamente, que não haverá demarcação no governo dele, afrontando a Constituição, já que ela define a demarcação das terras como um direito dos povos indígenas e um dever do Poder Executivo garanti-lo. Não é um ato discricionário.  O presidente também não quer saber de Unidades de Conservação (UC). Assim o presidente não só não cria ou demarca áreas protegidas como há propostas de revisar os limites das Tis e UCs criadas. Isso dá um sinal para quem invade essas áreas de que, eventualmente, os limites podem ser alterados, e que uma ocupação ilegal pode ser regularizada. O terceiro movimento é minar os acordos setoriais de eliminação do desmatamento na cadeia de produção, como no caso da moratória da soja. Em todos esses aspectos, temos um governo que sinaliza querer o desmatamento; isso até recentemente, quando a ficha começou a cair por causa da economia.


Nunca se teve tanta informação qualificada disponível e gratuita para agir contra o desmatamento, mas nunca se teve uma situação em que a possibilidade de ação foi mais restrita

CH: Os mecanismos para punir o desmatamento ilegal são eficientes? Há novos mecanismos capazes de frear essa tendência?

TA: Há mecanismos que já eram usados até quando as condições tecnológicas eram piores. Por exemplo, entre 2004 e 2012, o Deter, sistema do Inpe que detecta o desmatamento, tinha uma resolução baixa, de 250 a 500 metros. Ou seja: só pegava desmatamentos bem grandes, e entregava dados mensais. Com esse material inferior ao atual, foram realizadas centenas de operações contra o desmatamento, porque a informação era bem usada. Hoje temos a Deter B, com resolução de 30 a 60 metros, que gera informações diárias, e o número de operações caiu em vez de aumentar. Além disso, até 2018, os órgãos recebiam a informação do Deter e tinham que elaborar um relatório para saber se o desmatamento era ilegal, se estava em UC, quem era o proprietário etc. Isso levava seis horas, e os órgãos faziam cerca de mil relatórios por ano, que é menos de 1% das ocorrências de desmatamento. Com o MapBiomas Alerta, automatizamos o processo e, no ano passado, geramos 56 mil relatórios. Com um relatório é possível embargar rapidamente propriedades onde houve desmatamento ilegal, o que afeta o crédito rural e dificulta a comercialização da produção. Ou seja, nunca se teve tanta informação qualificada disponível e gratuita para agir, mas nunca se teve uma situação em que a possibilidade de ação foi mais restrita. São três pilares para controlar o desmatamento: se o sujeito desmatar, saberá que será pego; se for pego, haverá consequência; e mesmo se não for penalizado, não vai se beneficiar porque agentes econômicos não vão financiar ou comprar a produção.


Não chega a 1% a porcentagem de propriedades onde houve desmatamento no ano passado, mas essas causam prejuízo para os outros 99%. Se a atitude do governo fosse de tolerância zero com a ilegalidade, isso não aconteceria

CH: Quais os prejuízos econômicos da atual política ambiental no país? 

TA: Uma coisa é ter desmatamento, mas este estar em queda, e haver compromisso do governo e interesse de enfrentar o problema. Em 2008 e 2009, o desmatamento estava próximo ao atual, mas estava caindo, e o governo tinha esses compromissos. Então a percepção do investidor, da sociedade global, era de que o Brasil buscava resolver o problema. A resposta foi, por exemplo, a criação do Fundo Amazônia, com mais de um bilhão de dólares para continuar esse processo. Hoje é o contrário, e a preocupação ambiental e com o desmatamento é ainda mais forte no mundo. Entre 2010 e 2015, centenas de empresas se comprometeram a retirar o desmatamento de sua cadeia produtiva até 2020. O Brasil tinha uma meta de desmatamento que era um terço do que terá este ano. Então, o que estamos mostrando para fora é que o Brasil não tem controle, não vai cumprir suas metas, e a atitude do presidente é de que o desmatamento não é um problema, que, se garimpeiro invadir terra indígena, tem que regulamentar o garimpo e não tirá-lo de lá. Então a impressão para fora é de que não tem ninguém garantindo que o desmatamento não estará dentro da cadeia de produção. Do fundo de investimento à empresa que comercializa soja, ninguém quer estar relacionado ao desmatamento. Este é o risco Brasil hoje. Por haver uma crise de confiança no ente regulador, que é o governo, os atores econômicos vão precisar de maiores salvaguardas para interagir com o país, como a exigência de rastreabilidade dos produtos de todos os fornecedores. Não chega a 1% a porcentagem de propriedades onde houve desmatamento no ano passado, mas essas causam prejuízo aos outros 99%. Se a atitude do governo fosse de tolerância zero com a ilegalidade, isso não aconteceria.


Se passar dezenas de anos sem fogo, a floresta se recupera, mas isso se repete em cinco anos, a capacidade de recuperação se reduz e começa o processo de savanização

CH: O padrão espacial do desmatamento está intensificando a fragmentação da floresta amazônica?

TA: A fragmentação está em várias partes do território. O movimento do desmatamento vem de fora para dentro da Amazônia, vem pelas bordas e entra pelo caminho onde aparecem as estradas. Esse é o padrão mais clássico de desmatamento. Conforme as estradas vão se expandindo, aparecem novas áreas de desmatamento. Onde há mais assentamentos, a fragmentação pode ser maior como uma colcha de retalhos. O outro tipo de processo acontece dentro das UCs e das áreas indígenas, onde a lógica de proteção exige que se tenha integridade daquele ecossistema de grandes áreas, e o processo de desmatamento corrompe o objetivo de conservação de grande maciços florestais. E há algumas espécies animais que precisam de grandes áreas bem conservadas para poderem viver e reproduzir. Essa dinâmica de fragmentação acontece bastante pelo território. Além disso, tem o fogo. Na Floresta Amazônica, que é tropical úmida, naturalmente, o fogo é um evento muito raro, acontece uma vez a cada 500 anos. Por isso, a floresta não é muito capaz de lidar com fogo e se degrada muito. Quando se desmata uma floresta de 30 metros de altura, vai sobrar uma camada de 4 ou 5 metros de altura de vegetação cortada. Como faz para reduzir essa camada? Espera o período de seca na Amazônia, põe fogo, e esse fogo se espalha. Quem para esse fogo é a própria floresta, mas faz isso às custas de se degradar. Se passar dezenas de anos sem fogo, a floresta se recupera, mas isso se repete em cinco anos, a capacidade de recuperação se reduz e começa o processo de savanização, que é a transformação em outro ecossistema. Então, além do desmatamento, há muita cicatriz de fogo. No ano passado, pelos dados do Inpe, estima-se 10 mil quilômetros quadrados de área de desmatada e 8 mil quilômetros quadrados adicionais de cicatrizes de fogo, numa estimativa bem conservadora.

 

CH: É possível observar alguma mudança no uso da terra e no padrão de cobertura da floresta ao longo do tempo de observação?

TA: Tem vários ângulos para se olhar isso. No caso da Amazônia, o Mapbiomas identifica esses padrões de transições. Mas isso também foi identificado pela Embrapa e pelo Inpe num estudo chamado TerraClass, que mostra as margens de várias áreas desmatadas. Essas duas abordagens apontam que, entre 1988 a 2014, em média, 63% de tudo que foi desmatado foi convertido em pastagem de baixa produtividade; outros 23% foram abandonados e estão em regeneração, e 14% viraram áreas de utilização mais intensa, com pecuária mais manejada, mineração, cidades etc. Ou seja, para cada 100 hectares desmatados da Amazônia, apenas 14 têm uso intensivo. Aliás, no caso da área abandonada em regeneração, esse não é um processo virtuoso, mas sim de mau uso dos recursos. A floresta foi desmatada, o ambiente degradado, aquela terra já não dá mais retorno, é abandonada e começa a regenerar.

 

CH: Ao analisar os seis biomas brasileiros, é possível identificar áreas mais vulneráveis ao desmatamento e à degradação?

TA: Juntos, Amazônia e Cerrado, que são os maiores biomas, respondem por mais de 95% do desmatamento identificado no Brasil em 2019. A Amazônia tem 85% de cobertura florestal de vegetação nativa. Tem uma parte disso que já foi desmatada, mas recuperou. O Cerrado está com de 50 a 55% de cobertura. Na Mata Atlântica, a cobertura remanescente é 29%, mas tem uma lei de proteção específica. Os outros biomas são muito menores proporcionalmente. A Caatinga são matas secas, com dinâmica diferente de corte e recuperação. Proporcionalmente à sua área, o desmatamento no Pantanal é alto, mas, comparando em área absoluta com o restante do Brasil, acaba ficando pequeno. E o Pampa é o menor bioma do Brasil, metade do Rio Grande do Sul. Lá, a preocupação maior é com a expansão dos cultivos florestais, como eucalipto e pinus, sobre as áreas campestres. No caso do Pantanal, campos alagados e nativos, que eram utilizados, tradicionalmente, pela pecuária em pasto nativo, vêm sendo ocupados por pastagem plantada, muitas vezes associada a drenagem e desmatamento. As áreas de desmatamento do Pantanal são grandes e rápidas, é o bioma que tem o desmatamento mais rápido. Agora estamos calculando a velocidade do desmatamento: pegamos duas imagens, uma de antes e outra de depois do desmatamento, dividimos a área desmatada pelo tempo transcorrido entre as imagens, e conseguimos ver quantos hectares são desmatados por dia.

 

CH: Como avalia a legislação de proteção ambiental no Brasil?

TA: Diversos marcos foram constituindo a política ambiental brasileira, especialmente após a Constituição de 1988, nos diferentes governos que se sucederam, Sarney, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer. Todos eles, em maior ou menor velocidade, adicionaram camadas para melhorar e tornar mais robusta nossa legislação ambiental. Houve momentos em que quase parou, mas nunca antes tínhamos tido um Ministério do Meio Ambiente que operava para reduzir os mecanismos de proteção ambiental. É a primeira vez que isso acontece. Tem coisas que podem melhorar a legislação ambiental? Sem dúvida, mas significa aumentar os padrões de conservação, e não fazer o oposto.

 

CH: Como avalia o Plano Estratégico do Ministério da Agricultura?

TA: Primeiro, parabéns por terem feito um plano, porque planejamento realmente não é uma marca do atual governo. Mas, no meio de toda a discussão sobre desmatamento, o plano não toca no tema, que é crucial para a agricultura. O argumento do Ministério da Agricultura é que: “Desmatamento não é nosso tema, isso é responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente”. Enquanto acharem que o problema não é da agricultura, a pressão interna e internacional vai continuar. No plano, deveria ter um compromisso de não expandir a agricultura no Brasil desmatando.

 

CH: Como combater o falso dilema que opõe agronegócio à preservação e combate às mudanças climáticas? 

TA: A maior parte da agricultura brasileira é bem feita, mas pode avançar muito ainda. Se pegarmos os 25% dos que produzem com mais eficiência e produtividade e aplicarmos esse benchmark ao restante do país, seria possível dobrar a produção rural brasileira, sem precisar de mais nenhum hectare novo a ser ocupado. Ainda sobraria área para restaurar os lugares com prioridade de conservação. As questões fundamentais para a sustentabilidade na agricultura brasileira são, além de eliminar o desmatamento da linha de produção, multiplicar a eficiência do uso da terra; recuperar as Áreas de Preservação Permanente e reservas legais, obrigatórias pelo Código Florestal; massificar as práticas de agricultura de baixo carbono e implementar a rastreabilidade da cadeia de todos os produtos para mostrar que não estão contaminados com desmatamento. O tema da irrigação também é muito importante porque a agricultura irrigada é muito produtiva. Mas o Brasil tem 10% das áreas irrigadas que utilizam quase 70% da água consumida no país. E os planos atuais sugerem dobrar a área irrigada nos próximos 10 anos. Este crescimento deve considerar a demanda de água para todos os demais usos.  É preciso ser cuidadoso com isso. Minimizar o uso de agroquímicos também é importantíssimo, o Brasil é um dos líderes no consumo desses produtos. Que papel o país quer ter no tema da agricultura orgânica, o mercado que mais cresce no mundo? Tem também a questão da agricultura urbana e das alternativas à proteína animal que vão se multiplicar, e temos que estar preparados para isso. Cito também a bioeconomia e a questão do pagamento por serviços ambientais, que são uma forma de estimular e reconhecer quem faz mais do que a obrigação na proteção dos recursos naturais.


Esse cenário de o desmatamento seguir no ritmo atual não tem como acontecer porque, muito antes de 2050, a consequência seria savanizar a floresta, e os efeitos seriam dramáticos

CH: Como imagina o Brasil em 2050? É possível desenhar dois cenários, um a se manter o desmatamento como agora e outro mais otimista?

TA: Esse cenário de o desmatamento seguir no ritmo atual não tem como acontecer porque, muito antes de 2050, a consequência seria savanizar a floresta, e os efeitos seriam dramáticos no regime de chuvas com forte impacto na agricultura e na geração de energia elétrica no Brasil. No ano passado, na Universidade de Princeton, onde participo do programa de pesquisador visitante, fizemos o experimento de rodar um cenário do mundo sem a Amazônia. E o que aconteceria? A temperatura média global aumentaria 0,25 graus, o que estoura o Acordo de Paris, e a do Brasil subiria 2 graus, além de reduzir 25% das chuvas. O impacto seria dramático. A questão é: esse processo só vai acontecer quando acabar de desmatar a Amazônia? Não, acontece antes, em algum lugar entre 20 e 30% de perda da cobertura florestal. No ritmo em que estamos, isso pode estar no nosso horizonte nos próximos 10, 15 anos, e, talvez, seja um ponto de não retorno. Não podemos pagar para ver. Ano que vem ou daqui a três anos, as coisas voltarão ao curso; a questão é o tamanho do prejuízo que teremos até lá. Por outro lado, se usarmos todo o potencial, o Brasil tem tudo para ser a maior potência ambiental do mundo. Agora, precisa exercitar para não virar o oposto disso, ser a maior potência de destruição ambiental.

Valquíria Daher

Jornalista
Instituto Ciência Hoje

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