Mecânica quântica: uma nova imagem do mundo

Diferentemente das chamadas ‘revoluções científicas’ anteriores, que incluíram embates com concepções prevalecentes fora dos domínios da ciência, as mudanças de perspectiva ocorridas no início do século passado envolveram revisões radicais de concepções próprias da física. Em particular, a transição do mundo físico como contemplado no último ano do século 19 para aquele visto, duas décadas mais tarde, através da mecânica quântica ‐ teoria que teve que ser inventada para descrever os fenômenos do diminuto universo das entidades atômicas e moleculares ‐, é, até hoje, a mais profunda e também, em muitos aspectos, a mais desconcertante delas.
Até os físicos cultivam mitos sobre a física.  Um desses mitos anuncia de forma recorrente o ‘fim da física’, significando, com isso, não seu colapso, mas o fechamento final e definitivo dessa forma de conhecimento. Um dos registros mais conhecidos disso data precisamente de 1900, quando o influente físico irlandês William Thomson (lorde Kelvin, 1824-1907), visivelmente imbuído do espírito de mudança de século, afirmou, em uma conferência proferida na Royal Society e intitulada ‘Nuvens do século 19 sobre a Teoria Dinâmica do Calor e da Luz’ ‐ assuntos de sua especialidade ‐, que “agora não há nada novo por ser descoberto em física. Tudo o que resta são medidas cada vez mais precisas”.
Lorde Kelvin menciona apenas “duas pequenas nuvens no horizonte da física”: o resultado negativo da experiência de Michelson-Morley e o chamado problema da radiação do corpo negro. O éter era tido como um meio material que servia de suporte à propagação das ondas eletromagnéticas ‐ luz, por exemplo. Em 1887, os físicos norte-americanos Albert Michelson (1852-1931) e Edward Morley (1838-1923), em um dos experimentos mais famosos e importantes da física, não conseguiram comprovar ‐ como estava inicialmente previsto ‐ a existência do éter. Já o problema do corpo negro diz respeito à intensidade de radiação emitida por um corpo aquecido.
O nome ‘corpo negro’ vem do fato de que se trata de um corpo que deve ter a propriedade de absorver toda a radiação que incida sobre ele, reemitindo-a, depois de reprocessar a energia absorvida, segundo apenas propriedades gerais suas, notadamente a temperatura. Hoje, o exemplo mais notável de corpo negro é o próprio universo como um todo, que contém ‘radiação de fundo’ ‐ o que exclui de consideração as altas temperaturas de estrelas; por exemplo, do Sol, em particular ‐ correspondente a uma temperatura de 2,74 kelvin. A física da época não conseguia explicar, como, a uma dada temperatura, a intensidade da radiação emitida dependia do valor da freqüência com a qual ela era emitida.
A segunda das nuvens
Ainda em 1900, a segunda das pequenas nuvens se transformaria em ativa tempestade, com o sucesso da hipótese dos ‘quanta’ do físico alemão Max Planck (1858-1947), ou seja, a de que, na natureza, a energia é emitida e absorvida em ‘pacotes’ ‐ daí o uso do termo latino quanta, que no singular ( quantum ) significa ‘quanto’ ou ‘quantidade’ ‐ e não como um fluxo contínuo, como se acreditava. A outra pequena nuvem mostraria sua face demolidora cinco anos mais tarde, com os trabalhos de Albert Einstein (1879-1955) sobre a teoria da relatividade restrita, em que ele mostrou que o conceito de éter era totalmente desnecessário.
Diferentemente das chamadas ’revoluções científicas’ anteriores, que envolveram embates com concepções prevalecentes fora dos domínios da ciência ‐ como a revolução copernicana, que nasceu com a proposição feita pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) de que a Terra e os planetas então conhecidos giravam em torno do Sol ‐, as mudanças de perspectiva ocorridas no início do século passado foram as primeiras grandes revoluções ‘internas’, isto é, que envolveram revisões radicais de concepções próprias da física.
Em particular, a transição do mundo físico como visto no último ano do século 19 por Kelvin ‐ usualmente chamado mundo da física clássica ‐ para o mundo visto através da mecânica quântica é, sem dúvida, até hoje, a mais profunda e também, em muitos aspectos, a mais desconcertante delas. Nas palavras recentes do anglo-americano Anthony Leggett, ganhador do prêmio Nobel de Física de 2003, “a mecânica quântica é muito mais que apenas uma ’teoria’, ela é uma forma completamente nova de ver o mundo”.

A. F. R. de Toledo Piza
Instituto de Física,
Universidade de São Paulo

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