Morcegos e vírus mortais

Com raras exceções, as supostas conexões entre morcegos, vírus e doenças em humanos estão baseadas mais em especulação do que em evidências. Por outro lado, é de chamar atenção a história de alguns surtos de doenças relacionadas a morcegos e a análise do sistema imunológico desses animais, que parecem explicar por que eles são potenciais hospedeiros de uma grande diversidade de vírus sem, aparentemente, desenvolver as doenças causadas por eles.

Mais de 200 vírus de 27 famílias – alguns mortais e zoonóticos, que passam de animais reservatórios ou hospedeiros naturais aos humanos – já foram isolados, ou detectados de alguma forma, em diferentes espécies de morcegos. Recentemente esses mamíferos alados têm sido apontados como os principais suspeitos de serem os hospedeiros do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da pandemia de COVID-19, mas a conexão entre morcegos e o início da pandemia ainda não foi confirmada. Outros animais podem estar envolvidos, assim como a relação dos morcegos com outras doenças. Até aqui, há comprovação de que são os hospedeiros originais para os vírus da raiva, nipah e hendra. Mas, afinal, por que os morcegos são tão associados a essas doenças? Um retrospecto da história da identificação desses vírus pode explicar as associações.

 

Marburg e Ebola

Em 1967, um surto de febre hemorrágica acometeu trabalhadores de laboratórios na Sérvia e na Alemanha. Logo foi descoberto que a doença veio de macacos verdes, Chlorocebus sabaeus, enviados de Uganda à Europa, e que o agente etiológico era um vírus até então desconhecido, o Marburg – nome dado em alusão à cidade alemã onde a doença foi detectada pela primeira vez. Desde então, casos foram documentados com alguma frequência no continente africano. Em 1999, o Marburg foi encontrado em diferentes espécies de morcegos.


O maior surto de Ebola ocorreu de 2014 a 2016 na África Ocidental, devastando Guiné, Libéria e Serra Leoa, infectando 28.600 pessoas e matando mais de 11.300. De novo, as suspeitas recaíram sobre os morcegos frugívoros, mas investigações de campo não confirmaram


O maior surto de Ebola ocorreu de 2014 a 2016 na África Ocidental, devastando Guiné, Libéria e Serra Leoa, infectando 28.600 pessoas e matando mais de 11.300. De novo, as suspeitas recaíram sobre os morcegos frugívoros, mas investigações de campo não confirmaram

Em 1976, episódios de febres hemorrágicas graves e com taxa de mortalidade de 88% (318 casos, com 280 pessoas mortas) ocorreram numa vila rural no distrito no Zaire, atual República Democrática do Congo. No mesmo ano, outro surto, com características semelhantes e letalidade superior a 50%, ocorreu no que é hoje Sudão do Sul, a mil quilômetros do Zaire. Um novo tipo de vírus foi identificado como o causador da doença: o Ebola – que é da família do Marburg e recebeu esse nome em razão da proximidade dos casos com o rio Ebola, no Zaire. Sua fonte na natureza não foi identificada.

Mas qual a relação dos morcegos com os ebolavírus? A primeira pista que aponta esses mamíferos como potenciais hospedeiros surgiu em 1996, quando pesquisadores inocularam o Zaire ebolavírus em 24 espécies de plantas e 19 de vertebrados. Dentre esses, três espécies de morcegos frugívoros e insetívoros (Epomophorus wahlbergi, Chaerephon pumilus e Mops condylurus), suportaram elevadas cargas virais, sem desenvolver a doença.

Entre 2001 e 2003, outras pesquisas associaram os morcegos ao Zaire ebolavírus. Três espécies (Hypsignathus monstrosus, Epomops franqueti e Myonycteris torquata), coletadas na fronteira da República do Congo, tiveram detectados a Imunoglobulina G específica para Ebola no soro e RNA viral nos rins e baço – órgãos mais afetados pelo ebolavírus. Essas sequências de RNA foram semelhantes às do ebolavírus isolado de humanos no surto no Zaire. Além disso, foram encontrados anticorpos em morcegos das mesmas espécies e RNA de ebolavírus em outras espécies.

Mas o maior surto de Ebola ocorreu de 2014 a 2016 na África Ocidental, devastando Guiné, Libéria e Serra Leoa, infectando 28.600 pessoas e matando mais de 11.300. De novo, as suspeitas recaíram sobre os morcegos frugívoros, mas investigações de campo não confirmaram. No entanto, a espécie de morcego (Mops condylurus), tentativamente ligada ao primeiro caso do surto (um menino de dois anos), está entre as que sobreviveram às infecções experimentais realizadas em 1996. Assim, o papel dos morcegos como hospedeiros ou reservatórios desse vírus permanece incerto, e as evidências podem ser apenas coincidências.

 

Hendra e Nipah

Em Queensland, Austrália, um cavalo morreu de causa não diagnosticada em 1994. Dias depois, na mesma área, outros 17 foram diagnosticados com depressão, anorexia, febre, dispneia, ataxia, taquicardia, taquipneia e corrimento nasal; 14 não resistiram ou foram sacrificados. Duas pessoas que tiveram contato próximo com as secreções mucosas do primeiro cavalo doente apresentaram sintomas gripais semelhantes à influenza. Uma delas se recuperou, mas a outra, um treinador de cavalos, desenvolveu pneumonite, insuficiência respiratória, insuficiência renal, trombose arterial e morreu. Um paramixovírus (grupo de vírus com genoma de RNA e transmissão por gotículas) isolado do rim do treinador mostrou-se idêntico aos vírus isolados dos pulmões de cinco cavalos afetados. Os dois humanos afetados e os cavalos tinham anticorpos contra o vírus, e a doença foi reproduzida em cavalos saudáveis em pesquisas. Outros casos dispersos causados ​​por esse vírus foram identificados.

Depois de testes em vertebrados e artrópodes, o vírus foi isolado do sangue, tecidos fetais, fluidos uterinos, urina, fezes e saliva de raposas voadoras (morcegos frugívoros da família Pteropodidae). O paramixovírus recebeu o nome de Hendra, local onde ocorreram os primeiros casos. Raposas voadoras no leste da Austrália e Nova Guiné demonstraram ter anticorpos neutralizantes ao vírus. Avaliações epidemiológicas sugeriram que os cavalos são infectados com o vírus Hendra por contato direto ou indireto com esse animais e acabam infectando os humanos. Impedir o contato entre raposas voadoras e cavalos controlou a doença.


No cenário epidemiológico mais provável, porcos se contaminaram com o vírus Nipah ao comerem frutos parcialmente comidos pelos morcegos. Ao entrarem em contato com grandes quantidades de vírus em mucosas, fezes ou excretas de porcos, humanos se infectaram


No cenário epidemiológico mais provável, porcos se contaminaram com o vírus Nipah ao comerem frutos parcialmente comidos pelos morcegos. Ao entrarem em contato com grandes quantidades de vírus em mucosas, fezes ou excretas de porcos, humanos se infectaram

Em 1998, outro paramixovírus, o Nipah, foi reconhecido como o agente etiológico de uma doença fatal de humanos e porcos em Cingapura e na Malásia. Em junho do ano seguinte, mais de 100 mortes entre 250 casos de encefalite humana foram registradas na Malásia e outros 11 casos, incluindo um fatal, foram diagnosticados em Cingapura. Por também ter grandes genomas, homologias limitadas com outros paramixovírus e outras características únicas que o aproximam do Hendra, suspeitava-se que o Nipah tinha como hospedeiras naturais as raposas voadoras, o que se confirmou quando o vírus foi detectado na urina desses animais da espécie Pteropus hypomelanus e também em frutos parcialmente comidos por eles. No cenário epidemiológico mais provável, porcos se contaminaram com o Nipah ao comerem frutos parcialmente comidos pelos morcegos. Ao entrarem em contato com grandes quantidades de vírus em mucosas, fezes ou excretas de porcos, humanos se infectaram.

Surtos de Nipah também ocorreram em Siliguri, na Índia, e Bangladesh. Os locais fazem fronteira, e a análise do material genético dos pacientes confirmou que os vírus estavam mais estreitamente relacionados do que aos isolados na Malásia. Diferentemente de em outras regiões, a transmissão em Bangladesh ocorreu pela ingestão de seiva de tamareira – Phoenix dactylifera, uma palmeira da família Arecaceae – e, em seguida, de pessoa a pessoa. Os RNAs do vírus Nipah detectados em Bangladesh são variáveis ​​em suas sequências, sugerindo múltiplas introduções através das raposas voadoras indianas (Pteropus giganteus), que migram longas distâncias, e são encontradas nas Maldivas, Índia, Bangladesh, China, Nepal, Paquistão e Sri Lanka.

 

Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) e COVID-19

Em 2003, mais de quatro mil casos de SARS, com 250 mortes, foram relatados à Organização Mundial da Saúde (OMS) em mais de 25 países. A maioria ocorreu após exposição a pacientes com SARS em cuidados de saúde ou ambientes domésticos. As tentativas de identificar o agente causador do surto foram bem-sucedidas naquele mesmo ano, quando foi isolado um novo coronavírus (SARS CoV) de pacientes. A fonte do vírus na natureza ainda não havia sido determinada, mas saber que era um CoV tornou a pesquisa mais fácil. Os CoVs compreendem um grupo diversificado de vírus de RNA grandes, que causam doenças respiratórias e intestinais em humanos e outros animais. Seus genomas são os maiores (cerca de 30 mil nucleotídeos) de qualquer vírus de RNA conhecido.

Foram propostos, inicialmente, muitos cenários para o início do surto, incluindo infecções humanas originadas em civetas de palma mascaradas (Paguma larvata) e cães-guaxinins (Nyctereutes procyonoides) à venda em mercados de animais selvagens vivos na China continental. Então, pesquisadores investigaram a ocorrência de SARS CoV em morcegos de Hong Kong e detectaram um CoV do grupo 1 (alfa-coronaviurs). Outros dois grupos detectaram SARS CoV (grupo 2, betacoronavírus) nesses animais. Esses resultados mostraram que os morcegos são uma fonte natural de pelo menos alguns dos numerosos alfa-coronavírus e betacoronavírus.

Com relação à pandemia atual de COVID-19, causada pelo SARS-CoV-2, sabe-se apenas que o vírus é de origem animal, muito provavelmente de um animal silvestre. Uma análise do genoma viral completo revelou que o vírus SARS-CoV-2 está intimamente relacionado (89% de similaridade) a um grupo de coronavírus do tipo SARS (betacoronavirus) que havia sido encontrado anteriormente em morcegos na China. Entretanto, outra comparação do genoma viral completo do SARS-CoV-2 mostrou uma elevada similaridade (91%) com um betacoronavírus de pangolins (Pangolin-CoV).

 

Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS)

Em 2012, surgiram os primeiros casos de MERS, causada por um betacoronavírus chamado MERS-CoV, na Jordânia e na Arábia Saudita. Desde então, a doença surgiu em vários países da Península Arábica e suas proximidades, incluindo Malásia, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Tunísia e Filipinas. Fora dessa região, o maior surto ocorreu na Coréia em 2015, e começou com um viajante que retornou da Península Arábica. A maioria dos pacientes com MERS desenvolve doença respiratória aguda grave com febre, tosse e falta de ar. A taxa de letalidade é de cerca de 45%, e o vírus se espalhou pelo contato entre pessoas. Em 23 de janeiro de 2015, havia 956 casos laboratoriais confirmados de infecção por MERS-CoV, incluindo 351 mortes, uma grande proporção das quais com comorbidades pré-existentes.

Devido à semelhança com o SARS-CoV, pensou-se que os morcegos estivessem envolvidos na transmissão. E, em 2013, pesquisadores detectaram uma sequência parcial de RNA de um betacoronavírus, com 100% de identidade para o vírus a partir do caso-índice humano de MERS, no sedimento fecal de um morcego Taphozous perforatus na Arábia Saudita. Apesar dessas evidências, estudos recentes sugeriram que camelos (Camelus dromedarius) podem ser a fonte primária do vírus na natureza, o que vem sendo confirmado por infecções experimentais nesses animais. O MERS-CoV continua a causar doenças na Península Arábica, mas não se espera uma pandemia.

 

Por que os morcegos não adoecem?


Pela diversidade de vírus associados a morcegos, muitas pesquisas concentram esforços para compreender como esses animais podem carregar tantos patógenos sem necessariamente desenvolver as doenças

Pela diversidade de vírus associados a morcegos, muitas pesquisas concentram esforços para compreender como esses animais podem carregar tantos patógenos sem necessariamente desenvolver as doenças provocadas por esses microrganismos. Na Universidade da Califórnia, depois de compararem a resposta antiviral de primatas e morcegos, descobriu-se que as células de morcegos são mais resistentes a vírus por apresentarem uma resposta antiviral antes mesmo de serem infectadas, enquanto as células de macacos foram rapidamente destruídas.

Usando simulações matemáticas, a equipe recriou os experimentos em laboratório para calcular a rapidez com que os vírus infectaram outras células, e se os mecanismos antivirais tiveram um papel importante na disseminação viral. Os resultados sugerem que os vírus que se multiplicam sob a pressão do sistema imunológico dos morcegos têm maior taxa de disseminação célula a célula, mas são rapidamente destruídos pelos mecanismos antivirais. Embora os vírus se espalhem mais lentamente nas células dos macacos, estas foram rapidamente mortas.

Assim como são bem preparados para controlar infecções virais, os morcegos possuem mecanismos para limitar inflamações e, consequentemente, os danos colaterais dessas respostas em seu organismo. Já foram descritas mutações, supressão de expressão e baixa atividade de moléculas envolvidas nas respostas inflamatórias em morcegos, permitindo que o sistema imunológico deles controle os vírus sem causar uma resposta inflamatória exacerbada, que poderia causar dano nos tecidos e agravamento do estado de saúde. Esse pode ser um mecanismo-chave para explicar a vida longa e o status de reservatório de vírus dos morcegos.

Acredita-se que o surgimento da habilidade de voar seria a chave para explicar a resistência desses animais aos vírus e outros patógenos. Durante o voo há um aumento do metabolismo, resultando em níveis mais elevados de radicais livres de oxigênio, o que, por sua vez, gera mais moléculas de DNA danificado. Para evitar respostas inflamatórias indesejadas ao DNA danificado, os morcegos desenvolveram mecanismos de supressão da inflamação.

 

Importância para o ecossistema

Na maioria dos casos, a única evidência que associa morcegos às infecções zoonóticas é o isolamento ou a detecção do mesmo vírus em morcegos e humanos em áreas onde surgiram as doenças. Isso não prova que os morcegos sejam os hospedeiros; é apenas uma evidência de que, como mamíferos, humanos e morcegos são semelhantes o suficiente para servirem de hospedeiros temporários ao mesmo vírus. Em alguns casos, o mesmo vírus pode ser encontrado em outros vertebrados terrestres, como primatas, antílopes e pássaros, ou mesmo em artrópodes.

Devido às muitas lacunas em nosso conhecimento sobre morcegos e vírus zoonóticos, associar os animais à proliferação dessas doenças é um desserviço. Dissemina-se o medo entre a população, e esforços são dedicados a controlar o reservatório errado, o que pode atrasar ações de mitigação apropriadas para evitar mortes ou interromper a propagação da doença. Além disso, um extermínio das populações de morcegos pode levar à interrupção de importantes serviços ecossistêmicos prestados por esses animais.


Com a intensificação da invasão humana sobre áreas naturais, particularmente aquelas com alta riqueza biológica, novos vírus saltarão de morcegos e de outros animais para humanos causando doenças ainda desconhecidas


Com a intensificação da invasão humana sobre áreas naturais, particularmente aquelas com alta riqueza biológica, novos vírus saltarão de morcegos e de outros animais para humanos causando doenças ainda desconhecidas

Com a intensificação da invasão humana sobre áreas naturais, particularmente aquelas com alta riqueza biológica, novos vírus saltarão de morcegos e de outros animais para humanos causando doenças ainda desconhecidas. Assim, precisamos entender o papel dos animais silvestres na manutenção e circulação de vírus zoonóticos e os mecanismos subjacentes ao surgimento dessas doenças. Com isso, planos de manejo adequados poderão ser desenvolvidos para controlar a circulação desses vírus e minimizar os riscos de emergência dessas doenças, sem causar prejuízos a populações animais específicas. Não podemos ignorar o papel potencial dos morcegos na manutenção, circulação e transmissão de patógenos aos humanos nem sua importância para o ecossistema.

Ricardo Moratelli

Fiocruz Mata Atlântica
Fundação Oswaldo Cruz

Ariovaldo P. Cruz-Neto

Departamento de Biodiversidade
Universidade Estadual Paulista (UNESP-Rio Claro)

Alessandra Filardy

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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