Neurociência, libélula e literatura

Um diálogo com o filho Eduardo, quando este tinha sete anos, sintetiza bem o espírito versátil do cientista e escritor Angelo Barbosa Monteiro Machado, nascido em Belo Horizonte a 22 de maio de 1934. Certo dia, de volta da escola, o menino procurou o pai:

– A professora pediu uma pesquisa sobre a profissão dos pais. O que é que você faz?
– Sou professor universitário.
– Mas, pai, eu pensei que você fosse médico…
– Sou médico, mas não exerço a profissão.
– Mas você não estudou medicina?
– Sim, estudei.
– Mas eu vejo você mexendo só com bicho. Então você é veterinário…
– Não sou veterinário, sou zoólogo.
– Professor, médico, zoólogo… Ouvi dizer que você é escritor também?
– Isso mesmo.
– Ô, pai, e aquele lugar que você entrou, como é mesmo que chama?
– Academia. Academia Brasileira de Ciências.
– Isso! A mamãe disse que lá só tem cientista. Então você é cientista também?
– Sim.
– Quer saber, pai? Você é uma confusão! Vou fazer a pesquisa com a mamãe.

Ainda muito jovem, revelou aptidão incomum no trato com insetos

Numa época marcada pela superespecialização, um tipo singular, como é o caso de Angelo Machado, pode mesmo confundir até juízos menos ingênuos que o de uma criança. Ainda muito jovem, revelou aptidão incomum no trato com insetos, especialmente as libélulas, grupo em que se tornou especialista de fama mundial.

Convidado pelo respeitado entomólogo Newton Santos (1916-1989) para aprimorar seus conhecimentos sobre insetos no Museu Nacional do Rio de Janeiro, não hesitou em aceitar o convite. Hospedado na casa do tio Aníbal Machado (1894-1964), aproximou-se dos intelectuais que aos domingos acorriam à residência do ilustre escritor, em Ipanema, para participar das famosas ‘domingueiras do Aníbal’. Foi assim que começaram a se solidificar as bases de um terreno que só mais tarde exploraria com afinco: a literatura e o teatro.

Angelo Machado jovem
À esquerda, com aproximadamente três anos, na casa dos pais, em Belo Horizonte (MG). À direita, ainda jovem, Angelo Machado já mostrava afinidade por bichos: com o pássaro sofrê (‘Icterus jamacaii’), também conhecido como corrupião. (fotos: arquivo pessoal)

Antes mesmo de ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), começou a fazer uma histologia de ponta ao lado do especialista Wladimir Lobato Paraense (1914-2012), que trabalhava no escritório do Instituto Osvaldo Cruz em Belo Horizonte. Foi o início de uma brilhante carreira do morfólogo que depois se especializaria em ciências do cérebro.

Com a naturalidade dos predestinados, que mantêm um olho vivo no presente e outro bem assestado no futuro, Angelo sempre agarrou com determinação as boas chances que a vida lhe ofereceu. Hoje, aos 79 anos, vai duas vezes por semana ao Departamento de Zoologia da UFMG – do qual foi professor ao se aposentar no Departamento de Morfologia da mesma universidade – e trabalha 10 horas diárias em casa, pesquisando sobre libélulas ou escrevendo artigos científicos, peças de teatro e livros de literatura infantojuvenil.

Quem conhece Angelo Machado ou já assistiu a uma de suas palestras jamais se esquece do fino humor que permeia seu discurso

O saldo de uma vida dedicada à pesquisa e à escrita pode ser contabilizado nos 130 artigos científicos que publicou, nas inúmeras espécies zoológicas descritas em sua homenagem e nos muitos prêmios que recebeu, entre eles o Henry Ford de Conservação do Meio Ambiente, em 1998, o José Reis de Divulgação Científica, em 1995, e o Jabuti de Literatura infantojuvenil, em 1993, por O velho da montanha: uma aventura amazônica. Além deste, publicou outros 35 livros para crianças e adolescentes.

Quem conhece Angelo Machado ou já assistiu a uma de suas palestras em eventos científicos, culturais ou de divulgação de ciência sabe de seu talento para comunicar-se com públicos de diferentes áreas e idades, reconhece o quanto se aprende ouvindo-o falar e jamais se esquece do fino humor que permeia seu discurso.

Certa vez, falando do amigo, disse o dramaturgo mineiro Jota Dângelo: “o Angelo é um humorista nato e poderia ter vivido disso se quisesse”. Ele não quis viver disso, mas nunca abriu mão de enfrentar a vida com humor, tendo sempre, na ponta da língua, uma piada oportuna e inteligente para as mais variadas situações. Ganham com isso seus interlocutores, ganha com isso principalmente ele próprio, que sabe levar a vida como ninguém.

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Roberto B. de Carvalho
Ciência Hoje/ PR

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