Novos rumos do movimento negro

Nascido anos após a Lei Áurea – que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, mas não criou condições dignas de inserção dos ex-escravizados e seus descendentes na sociedade –, o movimento negro vem se transformando continuamente, influenciado por mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais no Brasil. Caracterizado pela pluralidade de suas formas de organização e também de suas pautas, o movimento vai muito além do combate ao racismo enraizado no país. Recentemente, os coletivos de estudantes universitários vêm trazendo renovação ao ativismo negro, buscando abrir espaço em currículos e no corpo docente do ensino superior e fortalecendo não só a luta antirracista, mas também o enfrentamento do patriarcado, da LGBTfobia, entre outros tipos de opressão.

ROVENA ROSA /AGÊNCIA BRASIL

Movimentos sociais são transformados pelo tempo histórico. Todos sofrem influências diretas das dinâmicas políticas, sociais, econômicas e culturais da sociedade. O movimento negro é um exemplo interessante para refletirmos mudanças na sociedade brasileira nas últimas três décadas, levando-se em conta fatores institucionais e políticos que afetam direta ou indiretamente sua organização.

Plural nas formas de se estruturar e com práticas específicas de atuação, o movimento negro tem origem no final do século 19 ou no início do 20,  a depender da leitura que se faça de sua história. Organizações formadas na década de 1930, como a Frente Negra Brasileira, são completamente diferentes daquelas criadas em fins dos anos 1970 ou meados das décadas de 1980 e 1990, entre elas, Movimento Negro Unificado, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Ilê Ayê, Criola e Centro de Articulação de Populações Marginalizadas.

O combate ao racismo e à discriminação racial em todas as suas formas são a identidade política comum do movimento, ainda que cada organização tenha desenvolvido suas próprias estratégias de atuação e intervenção junto à comunidade negra e à sociedade em geral.

A luta contra o racismo, para algumas organizações, pode significar denunciar o assassinato sistemático de jovens negros/as pelas forças policiais, enquanto, para outras, pode significar influenciar a construção de políticas públicas de saúde e educação, como aumentar a população negra nas universidades. Ou, ainda, pode significar revalorizar a estética negra por meio de práticas culturais ou educativas. Enfim, as formas de atuação das organizações negras caracterizam-se por diversidade e criatividade.

 

Nas universidades, a renovação do movimento

Dentre os diferentes tipos de organizações que compõem atualmente os movimentos negros brasileiros, preferiu-se olhar, neste texto, para a experiência dos coletivos de estudantes universitários, que se caracterizam por reunir alunos de um mesmo curso de graduação ou de diferentes cursos em torno de reivindicações comuns. Esses grupos expressam um tipo de renovação político-pedagógica que representa novas modalidades da ação coletiva negra.

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Movimento negro ou ação coletiva negra?

Mas, afinal, o que difere o movimento negro da ação coletiva negra? Faz pouca ou nenhuma diferença em termos práticos distingui-los. Certamente é um assunto que não diz quase nada a nossos vizinhos, colegas de trabalho, parentes negros ou brancos etc. Essa distinção é puramente analítica. O movimento negro é um conjunto de organizações ou entidades, compostas em sua maioria por pessoas negras, e que tem por finalidade o combate ou a luta contra o racismo em suas múltiplas dimensões.

Já o termo ação coletiva negra abarca a mesma ideia do movimento negro, mas se diferencia por possibilitar arranjos organizativos diversos. Por exemplo, um grupo de mulheres negras organizadas em um coletivo feminista pode ser visto como uma ação coletiva negra. Possivelmente sua pauta mais relevante seja a luta contra a opressão sexista e o patriarcado, mas, ainda assim, essas mulheres podem vir a pautar suas especificidades, forjando uma inflexão interseccional de raça e gênero. Um grupo de parlamentares negros em um partido político, independentemente do campo ideológico, mas que tenha como preocupação o planejamento de ações visando ao aumento do número de negros/as no Congresso Nacional, também é, nesse sentido, um tipo de ação coletiva negra.

Outro exemplo é pensar articulações políticas ou mobilizações de negros e negras a partir de situações conflitivas ou de pautas que se imponham na agenda pública. Nos anos recentes, a militância tem se dedicado a denunciar o “genocídio do povo negro” pelas forças estatais e se mobilizado sobre os frequentes casos de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana. A depender das articulações realizadas nesses casos, pode surgir ou não uma ação coletiva negra.

Em resumo, a ação coletiva negra surge de acontecimentos, situações e contextos de diversas oportunidades políticas que afetam e/ou reconfiguram a comunidade negra direta ou indiretamente.

Os coletivos de universitários negros/as atuam desde pelo menos meados dos anos 1980, período em que a exclusão da população negra no ensino superior era abissal. Geralmente tinham caráter efêmero, devido às dificuldades que caracterizam as organizações negras, como pouca estrutura financeira, falta de espaço físico, barreiras subjetivas na mobilização de estudantes em torno de reivindicações de cunho racial, entre outras.

Participar de coletivos não é tarefa fácil. Estudantes negros/as geralmente são pobres ou oriundos da classe média baixa e travam uma dura luta para manter-se na universidade, sem contar aqueles que são obrigados a abandonar seus cursos porque precisam trabalhar.

Espaços de articulação política negra dentro das universidades, esses coletivos muitas vezes transformam-se em organizações maiores ou, se não é assim, auxiliam na formação de novas lideranças.

Particularmente na década de 1990, transformações significativas foram percebidas nos movimentos negros, com efeitos que perduram até hoje, sobretudo no que se refere às suas estruturas. Organizações nacionais formadas por integrantes filiados, como Movimento Negro Unificado, Agentes de Pastoral Negro, dentre outras, perderam espaços de atuação política para organizações não-governamentais (ONGs). Os motivos são complexos, porém é possível dizer que um dos fatores-chave está no fato de as ONGs buscarem recursos para seu financiamento em agências internacionais, enquanto as organizações chamadas de ‘filiativo-nacionais’ optaram por um sistema de autofinanciamento e autogestão, a fim de evitar dependência externa e, consequentemente, comprometer sua autonomia política.

Seja de uma forma ou de outra, é importante considerar o ambiente institucional marcado pelo racismo estrutural, minando energias e potencialidades das organizações negras, ao mesmo tempo em que resistências locais são forjadas e fortalecidas.

Vários coletivos surgiram na primeira década deste século em diferentes universidades públicas brasileiras, impulsionados pelo crescente debate nacional em torno das políticas de ação afirmativa, sobretudo as cotas raciais no ensino superior, e pela massificação do uso das redes sociais.

Os governos petistas de Luiz Ignácio Lula da Silva e, depois, Dilma Roussef foram marcados por um cenário político mais aberto à participação dos movimentos sociais e da sociedade civil, incluindo os movimentos negros, nas instituições do Estado. Analistas e militantes consideram que, durante esse período de aparente hegemonia política da esquerda no âmbito do governo federal, as organizações negras e suas lideranças ‘suavizaram’ bastante posturas mais críticas e contundentes relativas aos governos.

Este texto apresenta algumas das questões mais relevantes para os estudantes desses coletivos, obtidas a partir de entrevistas. Esses coletivos de estudantes constituem uma modalidade de ação coletiva negra e são, portanto, parte da experiência política dos movimentos negros brasileiros das últimas décadas.

Como foi feita a pesquisa?

A presente pesquisa surgiu do interesse em estudar as dinâmicas dos movimentos negros e entender melhor os desafios em torno da luta contra o racismo. Para isso, foram entrevistados estudantes de coletivos universitários negros entre os dias 6 de janeiro a 12 de fevereiro de 2019. Houve uma preocupação em abarcar um mínimo de abrangência nacional, por mais incompleta que seja a amostra. Nesse sentido, foram entrevistados estudantes de 11 coletivos de Rio de Janeiro, Bahia, Pará e Piauí, sendo a maioria mulheres, entre 20 e 30 anos, cursando graduação na área de ciências humanas.

A fim de facilitar a interação, foram utilizadas ferramentas de comunicação eletrônica, como o WhatsApp e o Messenger, do Facebook. As questões feitas foram basicamente as seguintes: como e quando o coletivo foi constituído? Quais têm sido os principais desafios em termos organizativos? Quais são as temáticas e pautas mais importantes do coletivo? Qual a composição de gênero do grupo? Qual a relação com a universidade e com organizações da sociedade civil?

Raça, gênero e as novas formas de fazer política

ROVENA ROSA /AGÊNCIA BRASIL

Raça, por um motivo óbvio, é um fator básico de mobilização na formação desses coletivos. Porém, não é necessariamente o único fator e, para alguns coletivos, nem é o fator central. Aliás, a ideia de raça só faz sentido quando articulada ou interseccionalizada com outras categorias de mobilização política, como gênero, classe social, sexualidade e posicionamento ideológico.

Se, para a militância negra anterior aos anos 2000, era possível estabelecer uma distinção programática entre a luta contra o racismo e a luta antissexista, definitivamente não é possível para a geração de ativistas dos coletivos da atualidade. E a explicação para isso é simples: nas últimas duas décadas, o feminismo influenciou a pauta de atuação de praticamente todos os movimentos sociais. No campo dos movimentos negros, as organizações de mulheres negras parecem ter ganhado muito mais musculatura política e institucional do que as hegemonizadas por homens. Portanto, não bastava mais somente contrapor-se e lutar contra o racismo estrutural ou institucional, por mais relevantes que sejam essas lutas. As reivindicações em torno da igualdade de gênero ou pelo fim da opressão do patriarcado transformaram-se em narrativas incorporadas pelos estudantes organizados nesses coletivos, com destaque para as jovens feministas negras.

Todos os coletivos que fizeram parte da pesquisa têm maioria de mulheres, mas as razões para isso não são evidentes. Para alguns/as entrevistados/as, a maioria de estudantes negras se explica pelo maior número de mulheres inscritas nos cursos frequentados pelos participantes de coletivos. Para outros/as, o motivo é o debate sobre feminismo, protagonismo negro, feminicídio, LGBTfobia, patriarcado etc. ter chamado mais a atenção das mulheres e, de certo modo, ‘afastado’ os rapazes dos coletivos. Para outros/as ainda, os estudantes do sexo masculino, sobretudo heterossexuais, têm mais dificuldade em aceitar a hegemonia política e organizativa das mulheres negras, especialmente quando estas são lésbicas e bissexuais. Em outros termos, sistemas de opressão presentes no tecido social, como machismo, sexismo e homofobia, estão no dia a dia dos coletivos, gerando tensões, embates e novas tessituras do fazer político.

Cada coletivo tem uma particularidade do ponto de vista dos modos como decidem se organizar. Os participantes geralmente são jovens adultos negros ou negras que entraram nas universidades públicas no contexto de consolidação das políticas de ação afirmativa e que, ainda assim, enfrentam toda sorte de resistência racista da comunidade acadêmica, além das próprias características de uma juventude imersa em um mundo em constante transformação, cada vez mais líquido, algo que dificulta ainda mais compromissos de longo prazo.

Uma das questões levantadas na pesquisa foi a existência de um ‘problema geracional’ na militância em termos da continuidade ou do esquecimento das conquistas políticas de uma geração para outra. Talvez isso seja resultado de ações insuficientes de formação política direcionada para esses universitários.

Importante destacar que universidades que adotam cotas raciais ou outras modalidades de ação afirmativa não são necessariamente progressistas quando o assunto é a (re)discussão das relações raciais. Apesar dos avanços nos últimos anos em termos de tradução de livros e artigos que tematizam relações raciais, história da África etc., os currículos dos cursos de ciências humanas continuam ‘eurocentrados’, na opinião dos/as estudantes entrevistados/as. Uma pauta importante de reivindicação é exatamente essa: que os cursos tenham mais bibliografia de autoria negra. Professores/as negros/as ainda são minoria, mesmo nos cursos de ciências humanas, algo que afeta diretamente as mudanças curriculares esperadas.

Por outro lado, a precariedade ou ausência de programas de assistência estudantil para estudantes negros/as, quilombolas, indígenas ou de baixa renda tem se revelado uma incômoda realidade em boa parte das universidades, dificultando imensamente que essas pessoas completem seus cursos em condições mínimas de qualidade.

Apesar das dificuldades que enfrentam, os coletivos têm se revelado espaços vitais para a renovação do ativismo negro, empenhando-se na luta antirracista, antissexista, contra a homofobia e outros tipos de opressão que os afetam direta ou indiretamente.

Resta agora saber como esses coletivos negros atuarão frente à coalizão nacional de direita que governa o país, com promessas e propostas contrárias a praticamente todas as pautas de lutas defendidas por esses grupos de estudantes. O fechamento dos horizontes institucionais no âmbito da educação superior pode trazer como resposta um fortalecimento dos coletivos. Pelos relatos ouvidos, estão dispostos e cheios de energia para os novos embates que virão. E certamente não serão poucos.

Marcio André de Oliveira dos Santos

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), campus dos Malês (Bahia)

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