Em grande parte das obras de ficção científica, a tecnologia aparece como instrumento de destruição e decadência social.

Em geral, os autores clássicos que escreveram sobre ficção científica encaram o futuro com franco pessimismo. Há exceções, claro, como a obra A sentinela, do escritor britânico Arthur C. Clarke (1917-2008), um livro escrito em 1951 que mais tarde inspirou o cineasta norte-americano Stanley Kubrick (1928-1999) a produzir o magistral filme 2001 – uma odisseia no espaço. Cinquenta anos depois, o filme de Kubrick é ainda muito atual.

O astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan (1934-1996) pode ser considerado também um otimista com seu livro Contato, que acena para a existência de civilizações bem intencionadas no universo. Mas, a escritora britânica Mary Shelley (1797-1851), o francês Júlio Verne (1828-1905), os britânicos Aldous Huxley (1894-1963) e George Orwell (1903-1950) e o norte-americano Ray Bradbury (1920-2012) invariavelmente descrevem o porvir como um cenário sombrio. E, para esses videntes, o principal agente da tragédia é, sem dúvida, a tecnologia.

Destaca-se nesse grupo, sobretudo, o escritor britânico H. G. Wells (1866-1946), que, apesar de seu fascínio pelas descobertas e pelos avanços de sua época, viveu durante duas guerras mundiais, o que, certamente, deve ter moldado sua visão distópica, decorrente da propensão humana de se autodestruir e, de quebra, levar o planeta junto.

Além de escritor, Wells era também sociólogo e jornalista e, de fato, seus protagonistas consistentemente expressavam grande preocupação com a sociedade, o alvo primário da tecnologia. Após cursar biologia no Royal College em Londres, Wells não só ensinou ciências como também escreveu um livro-texto de biologia. Esse conhecimento deu significativa credibilidade a seu livro A ilha do Dr. Moreau, que, de certa maneira, antecipou o que se denomina hoje de biotecnologia, com suas reais possibilidades de produzir seres transgênicos.

Mas foi seu primeiro livro, A máquina do tempo, que apresenta dramática e brevemente a tecnologia como o instrumento da decadência social em futuro bem longínquo. Wells discorre sobre a mudança pela qual passam os humanos, usando os preceitos propostos pelo naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) em Origem das espécies, lançada em 1859. Ao explicar o processo de especiação que ocorre com os humanos, Wells chega a citar Darwin e usa em seu romance uma escala de tempo bem compatível com a do processo evolutivo.

Em resumo, Wells propõe que o Homo sapiens é o ancestral comum de duas novas espécies: os Elois, pacíficos e dóceis, vivendo um dolce far niente, e que, sem saber, serviam de alimento para os Morlocks, seus predadores e os detentores da tecnologia do momento. Embora os Elois sejam descritos como graciosos indivíduos, seu comportamento social é bem objetável, uma vez que eles carecem totalmente de educação e solidariedade, por exemplo. Portanto, não há muita distinção moral entre os Elois e os Morlocks – habitantes das trevas que encontraram estratégias de sobrevivência.

O paralelo óbvio é a nossa atual relação com a pecuária e o inevitável esgotamento do meio ambiente. E também a atitude social gerada pela tecnologia. Quem já leu A máquina do tempo certamente não terá dificuldades em transpor seus personagens para os dias de hoje.

Há alguma dúvida de que os telefones celulares, verdadeiros milagres tecnológicos que, de fato, alteraram em nível global os hábitos sociais, tenham também gerado os narcisistas e indiferentes Elois hodiernos? E os Morlocks, quem serão?

Franklin Rumjanek

Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

CONTEÚDO EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Para acessar este ou outros conteúdos exclusivos por favor faça Login ou Assine a Ciência Hoje.

Seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Outros conteúdos desta edição

614_256 att-27930
614_256 att-27650
coringa
614_256 att-27031
614_256 att-26983
614_256 att-26974
614_256 att-26919
614_256 att-26908
614_256 att-26891
614_256 att-26895
614_256 att-26875
614_256 att-26828
614_256 att-26815
614_256 att-26809
614_256 att-26776

Outros conteúdos nesta categoria

614_256 att-38926
614_256 att-33286
614_256 att-38239
614_256 att-32274
614_256 att-37536
614_256 att-31269
614_256 att-36896
614_256 att-30228
614_256 att-36159
614_256 att-28340
614_256 att-35289
614_256 att-34502
614_256 att-34656