O biólogo australiano Edward Game é um dos grandes especialistas da atualidade em bioacústica, área que avalia a ‘saúde’ de ecossistemas por meio dos sons que esses ambientes produzem.

Com larga atuação em planejamento de conservação, Game é cientista-chefe da organização não governamental (ONG) The Nature Conservancy para a região do Pacífico asiático. É também professor da Universidade de Queensland (Austrália) – por onde se doutorou em biologia marinha – e editor-chefe da prestigiosa revista Conservation Letters – honraria rara para um cientista de uma ONG.

No momento, ele se dedica a estudar, por meio da bioacústica, florestas da Papua-Nova Guiné, de onde ele concedeu essa entrevista à CH.

Como a bioacústica funciona, e como ela pode ajudar a investigar a saúde das florestas tropicais?
A bioacústica são os sons do mundo natural. Muitas espécies vocalizam, como rãs, pássaros, insetos, morcegos e até mamíferos. Com o tempo, os animais desenvolveram a capacidade de vocalizar em determinadas frequências e com padrões particulares, de modo que um possa escutar o outro, sem que a comunicação entre eles seja bloqueada. Mas, à medida que florestas ou outros ecossistemas são explorados ou degradados, espécies desaparecem, e, desse modo, perdemos alguns desses nichos acústicos. Com isso, a biofania (ou sons da floresta) acaba degradada também.

Na Papua-Nova Guiné, estamos usando gravações da paisagem sonora das florestas para avaliar o trabalho de conservação em comunidades da ONG The Nature Conservancy. Temos ajudado 11 comunidades nas montanhas Adelbert a criar planos de conservação para o uso da terra. Cada uma dessas comunidades designa áreas para a coleta de produtos da floresta, caça, agricultura, desenvolvimento das vilas e conservação.

Há muitas outras comunidades que querem trabalhar conosco, e o governo da província de Madang quer expandir esse nosso planejamento do uso da terra para outras regiões da província, enquanto o governo federal quer que façamos trabalho similar em outras províncias. Porém, ainda não temos boas evidências de quão grandes as áreas de conservação precisam ser para sustentar as espécies que essas comunidades querem preservar, incluindo, por exemplo, aves-do-paraíso, pássaros-construtores, bandicotas [roedores], cuscus [marsupiais], casuares [aves]. Então, a análise acústica irá nos ajudar a dizer se as atuais áreas de conservação são grandes o suficiente para reter por completo a acústica da floresta e, portanto, sua biodiversidade como um todo.

Em que tipos de ambiente podemos usar a bioacústica para coletar informação sobre a biodiversidade?
Você pode usar a bioacústica em basicamente qualquer ambiente.

Estamos descobrindo que essa técnica é uma ótima ferramenta para as florestas tropicais, onde outros tipos de levantamento são mais difíceis. Mas sei de pesquisadores que estão usando a bioacústica com sucesso para propósitos similares em áreas de agricultura, corais de recife e fontes de água doce.

Como uma floresta saudável soa? Qual o primeiro som a diminuir significativamente quanto a saúde dela começa a se deteriorar?
Uma floresta saudável é realmente ruidosa. Há uma imensidão de insetos produzindo ruídos o tempo todo, e alguns períodos do dia, especialmente as primeiras horas da manhã, são repletos de vocalizações de pássaros. Em geral, os primeiros sons a diminuir são os de espécies que dependem de grandes áreas de floresta primária intacta ou daquelas mais comumente caçadas. Nos dois casos, isso ocorre mais frequentemente para as grandes espécies de pássaros.

Quando a degradação atinge níveis altos, a floresta é muito mais quieta do que uma floresta intacta

O senhor pode descrever como uma floresta altamente degradada soaria?
Quando a degradação atinge níveis altos, a floresta é muito mais quieta do que uma floresta intacta. Se ouvirmos com atenção, provavelmente escutaremos que os sons passam a ser produzidos basicamente por um pequeno número de espécies, aquelas que se saem bem em hábitats muito degradados. Além disso, notaremos que esses sons ocupam um conjunto muito reduzido de frequências.

Como soa uma floresta de dia e de noite?
Nas florestas da Papua-Nova Guiné, é fácil escutar – e, de fato, ver [nos gráficos que representam as gravações] – a diferença de sons diurnos e noturnos. À noite, a atividade dos insetos é arrebatadora, quando a floresta fica muito mais barulhenta. Nas primeiras horas da manhã, há os sons tanto dos insetos quanto agora os de muitas aves – é o chamado ‘coro do amanhecer’. Mais tarde, ainda de manhã, quando o sol está alto, há poucos insetos fazendo barulho e menos pássaros, mas podemos escutar essas aves mais claramente. À medida que vai escurecendo, você volta a escutar os insetos, bem como os sons das criaturas da noite, como rãs e aves noturnas.

Que som o senhor considera o mais impressionante em uma floresta saudável?
Acho que a coisa mais impressionante em uma floresta saudável é realmente a ausência de certos sons: aqueles causados pelos humanos. Em nosso cotidiano nas cidades, estamos constantemente cercados por sons, e é justamente isso que transforma em uma experiência particularmente especial estar em um lugar que é cheio de sons, mas no qual nenhum deles é produzido por nós. É a ‘Grande Orquestra Animal’, segundo o pioneiro da bioacústica [o músico e ecologista norte-americano] Bernie Krause.

Quando o senhor e sua esquipe chegam a uma área para gravar os sons, como escolhem o local mais adequado para pôr os equipamentos de gravação? E quanto tempo dura essa coleta?
Em nossos trabalhos nas florestas da Papua-Nova Guiné, tentamos achar lugares que são representativos do tipo de área que estamos estudando. Então, nós nos esforçamos para caminhar até o centro dessa região – seja ela uma área de conservação, seja ela uma área designada para caça ou extração de madeira. Amarramos nossos equipamentos a árvores – o que não é muito trabalhoso em uma floresta tropical.

Nosso objetivo é fazer uma gravação de 24 horas, sem interrupções, sem nossa interferência, o que, em geral, significa deixar os gravadores ligados por três dias e aproveitar as 24 horas intermediárias.

Chuva, vento e outros fatores naturais interferem?
Sim, chuva principalmente. Quando está chovendo muito em uma floresta tropical, você não pode ouvir muito mais do que o som da chuva, e, além disso, a maioria dos animais para de produzir sons nesse período. A vantagem dessa situação é que as gravações permitem determinar a duração e a intensidade da chuva com muita exatidão.

Uma floresta tropical tem infrassons e ultrassons, inaudíveis para os seres humanos?
Muitos. Na Papua-Nova Guiné, há pássaros incríveis chamados casuares. Não se conhece muito sobre a vocalização deles, mas sabemos que eles emitem frequências muito baixas, abaixo de 100 hertz. E há também vários morcegos que vocalizam em frequência abaixo daquelas que podemos ouvir [20 hertz]. A fauna de morcegos é provavelmente mais diversa do que imaginamos, e isso se dá, em parte, porque poucas pessoas têm estado lá para gravar esses sons [na faixa dos ultrassons].

A bioacústica nos permite estimar biomassa ou outro parâmetro ecológico?
Essa é uma pergunta interessante sobre a correlação entre medidas acústicas e outras propriedades ecológicas nas quais estamos interessados. Não estou ciente de qualquer trabalho visando estimar a biomassa [massa de matéria viva] a partir da bioacústica, mas certamente há muitos deles usando a bioacústica para estimar parâmetros como riqueza de espécies e biocondição [‘saúde’ de um hábitat].

Atualmente, há abordagens muito mais sofisticadas para o reconhecimento automático de espécies nas gravações, e métodos estatísticos inteligentes têm sido desenvolvidos para permitir estimativas robustas a partir dos dados obtidos por bioacústica

A bioacústica permite monitorar individualmente espécies?
Sim. Por sinal, essa é a aplicação mais comum da bioacústica, empregada com mais frequência do que a gravação de uma ampla paisagem sonora, como a que estamos usando [na Papua-Nova Guiné]. Atualmente, há abordagens muito mais sofisticadas para o reconhecimento automático de espécies nas gravações, e métodos estatísticos inteligentes têm sido desenvolvidos para permitir estimativas robustas a partir dos dados obtidos por bioacústica.

Como está a saúde das florestas da Papua-nova Guiné atualmente? há experimentos similares em outras regiões do mundo?
A Papua-Nova Guiné ainda tem florestas maravilhosamente intactas, muito saudáveis, mas, como a maioria das florestas tropicais, elas estão sob crescente pressão da extração madeireira, mineração e do aumento da poluição. Atualmente, há excelentes trabalhos em bioacústica ocorrendo em várias partes do mundo – para mim, a bioacústica é uma das ferramentas da ecologia e conservação de mais rápido crescimento.

Uma das coisas boas sobre o trabalho em bioacústica é que ele nos dá um registro duradouro e imparcial de um ecossistema, um registro que pode ser mantido como referência e ser facilmente reanalisado no futuro.

A bioacústica pode aumentar a consciência sobre as questões ambientais e conservacionistas?
Certamente. Escutar como soa um ecossistema distante é um modo muito visceral de conectar as pessoas a ele. E a diferença dos sons de um ecossistema intacto e um degradado é bem impressionante. Acho que a bioacústica oferece uma maneira formidável de elevar a consciência ecológica não só sobre as mudanças que ocorrem nos ecossistemas, mas também sobre as espécies que os habitam.

 

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje

Everton Lopes
Especial para Ciência Hoje

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