Os sentidos, o cérebro e o sabor da comida

Faculdade de Farmácia e Bioquímica, Universidade de Buenos Aires
Associação Argentina de Gastronomia Molecular

Pode parecer que, dos cinco sentidos tradicionais – audição, visão, tato, olfato e paladar –, apenas um se refere especificamente à comida, mas não é simples assim. Já antes de provar um alimento, nossos outros sentidos, sobretudo a visão e o olfato, e em alguns casos também a audição (quando ouvimos a fritura de um alimento, por exemplo), além de muitos outros fatores, condicionam essa experiência.

Isso é verdadeiro a tal ponto que nossa apreciação de um prato não é igual em uma mesa com toalha ou em uma sem toalha, com música estridente ou tranquila, com talheres de prata ou de plástico, desfrutando de uma excelente companhia ou discutindo acaloradamente com alguém. O ato de comer é uma experiência sensorial complexa, como escreveu Susana Fiszman, da Sociedade Espanhola de Bioquímica e Biologia Molecular.

Todos os nossos sentidos intervêm na experiência gastronômica, e a eles se somam certos fatores não sensoriais do contexto, que afetam não apenas nossas percepções, mas também nossa aceitação e desfrute das comidas.

Hoje estão sendo feitos muitos experimentos que visam elucidar como e por que ocorrem essas interações cruzadas (cross modal interactions, em inglês) de nossos sentidos com esses fatores não sensoriais do ambiente em que comemos.

Tanto a cor quanto a forma de um alimento criam expectativas sobre o que vamos provar

A visão nos permite perceber a forma, a distância, o tamanho e a cor de objetos, entre eles, os alimentos. Tanto a cor quanto a forma de um alimento criam expectativas sobre o que vamos provar. Sua influência é tão importante que a intensidade com que se percebem alguns sabores varia segundo a cor da comida, e um mesmo alimento pode ter sabor distinto se sua cor for alterada. Como não há alimentos naturais de cor azul, por exemplo, qualquer comida que tenha essa cor parece pouco apetitosa e por isso menos saborosa. Seria interessante verificar se a aceitação dessa cor em alimentos é influenciada por seu aparecimento, nos últimos anos, em bebidas.

O gosto da comida é o produto da detecção, na boca, por células especializadas chamadas de ‘receptores’, situadas nas papilas gustativas, de cinco tipos distintos de moléculas: doce, salgado, ácido, amargo e umami.

O estímulo percebido pelo receptor é passado como impulso nervoso ao cérebro, que interpreta os sinais que recebe segundo esses sabores básicos. Foi por isso que, na feira Masticar 2014 (Mastigar 2014), em Buenos Aires (Argentina), o biólogo Diego Golombek e o neurocientista Mariano Sigman usaram ‘A comida entra pelo… cérebro’ como título de uma palestra. As papilas gustativas estão distribuídas na língua, no palato, na mucosa das bochechas, nas amígdalas, na úvula e na região superior da garganta. É por isso que pessoas que perderam a língua podem continuar a perceber sabores.

O sabor doce resulta da presença de açúcares, mas nem todos têm a mesma potência, ou seja, não provocam a percepção da mesma doçura (o que vale também para os adoçantes dietéticos). Já o sabor salgado resulta do sal comum ou de outros sais, que também não geram esse sabor com a mesma intensidade. É percebido muito rapidamente, mas demora a desaparecer. Também se percebe rapidamente o sabor ácido, mas nesse caso a velocidade de percepção pode variar bastante, em função das substâncias presentes na saliva e do tipo de sabor ácido que se prova, o que resulta em uma ampla gama tanto de estimulação quanto de permanência.

O sabor amargo é de percepção lenta, mas duradoura: se mantém por quase um minuto depois que se enxagua a boca

O sabor amargo é de percepção lenta, mas duradoura: se mantém por quase um minuto depois que se enxagua a boca. Nem todas as substâncias amargas podem ser detectadas por todas as pessoas – particularidade de origem genética que distingue essas substâncias, por exemplo, das doces.

O umami foi o último sabor químico básico aceito pela comunidade científica. Seu nome vem de uma palavra japonesa que pode ser traduzida por ‘agradavelmente saboroso’. Gerado pelo glutamato monossódico, esse sabor é encontrado em alimentos ricos em proteínas e em alguns vegetais, como tomates, aspargos e fungos.

Entre os gostos básicos também existem interações que muitos reconhecerão: o amargo e o doce, em altas concentrações, se anulam mutuamente, como acontece no caso do café com açúcar. Também se contrabalançam o ácido e o doce.

Misturar salgado e doce, no entanto, aumenta o sabor doce se as concentrações são baixas, coisa que não ocorre com altas concentrações, que podem anular a doçura ou não ter efeito sobre esta. Essas interações têm produzido resultados gastronômicos muito apreciados, como pôr um pouco de açúcar no molho de tomate para mascarar a acidez, ou usar quantidades não perceptíveis de sal no chocolate amargo para suprimir a percepção do amargor.

Odores e aromas

A textura dos alimentos também muda a percepção da intensidade de cada gosto: quanto mais viscosa é uma preparação, menor a percepção dos gostos. Outro fator com alguma influência é a memória emocional associada ao olfato. Os cheiros de comidas que acompanharam determinadas situações – prazerosas ou desagradáveis – influem em nosso estado de ânimo quando voltamos a senti-los.

O olfato, sentido que opera quimicamente, como o paladar, percebe odores quando os receptores do bulbo olfatório de nossa cavidade nasal entram em contato com determinadas moléculas voláteis. Essas moléculas estimulam as terminações nervosas dos receptores, que então enviam sinais ao cérebro e este os interpreta: melão maduro, pescado fresco ou carne podre. As substâncias voláteis que entram no nariz são chamadas de odores, e as que chegam da boca (pela comunicação entre a garganta e as fossas nasais) são denominadas aromas. É assim que o sentido do olfato percebe, enquanto mastigamos, as moléculas voláteis que identificam o alimento.

O olfato e o paladar se relacionam
Para construir, no cérebro, a percepção do sabor dos alimentos, todos os sentidos atuam em conjunto, embora, além do paladar, a visão e o olfato tenham participações especiais. (foto: Martin Cathrae / Flickr / CC BY-SA 2.0)

Se o olfato está ausente, por algum problema fisiológico ou por um resfriado, costumamos dizer que não sentimos o gosto da comida, embora seja apenas o odor ou o aroma diferencial de cada alimento o que não percebemos. Mesmo nesses casos, podemos identificar os gostos básicos e outras sensações.

Sensações corporais

O sabor, então, é a somatória do gosto com o aroma e mais um conjunto de sensações corporais. Estas podem ser táteis, térmicas ou químicas e nos trazem informações sobre a consistência, a temperatura, a adstringência (sensação de secura), ou sobre a característica picante, acre, ardente, refrescante ou metálica dos alimentos.

A sensação de picante resulta da estimulação de terminações nervosas da boca, que enviam sinais ao nervo trigêmeo e geram dor. A substância química característica desse estímulo é a capsaicina, presente na maioria das pimentas. A sensação refrescante é gerada por uma reação química com nossos receptores de temperatura que, estimulados por substâncias como o mentol, induzem a percepção de frio, mesmo sem mudança na temperatura. O sabor metálico, por sua vez, está em discussão no meio científico: certos estudiosos postulam que se trata de um gosto, como o salgado e o doce.

Da mesma maneira, acre e ardente descrevem de forma diferenciada outras sensações provocadas por diferentes substâncias.

Por outro lado, tanto o gosto quanto o olfato são sentidos que podem se ‘cansar’, ou seja, sofrer saturação. Se um estímulo é permanente, deixamos gradualmente de responder a ele: é por isso que a primeira garfada de uma comida parece mais saborosa que a última, e que não sentimos mais o odor de um ambiente um tempo após entrar nele. Isso explica a variedade dos menus de degustação dos restaurantes, pois os sucessivos pratos renovam os estímulos ao cérebro e nos proporcionam reviver satisfações.

Temos a capacidade de distinguir numerosas substâncias e suas misturas em distintas proporções. Pode-se desenvolver e educar o olfato, ou seja, treinar a atenção que prestamos aos estímulos e a habilidade do cérebro para relacioná-los. Nossa habilidade de discriminação é tão grande que até agora não foi possível criar um equipamento capaz de nos imitar.

Texto originalmente publicado na edição 142 da revista argentina Ciência Hoy e incluído também na CH 328.

Mariana Koppman
Faculdade de Farmácia e Bioquímica, Universidade de Buenos Aires, e
Associação Argentina de Gastronomia Molecular

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