Série catalã sobre professor de filosofia dá lição sobre a difícil missão de educar os jovens no ensino médio.

 

Uma série da TV catalã é uma verdadeira lição sobre como ser professor no ensino médio. (Sabemos que esse nível do ensino conhece inúmeros problemas, que a mal concebida reforma decretada pelo governo atual não há de resolver – entre eles, o número excessivo de disciplinas, sendo quase inevitável que os jovens se entediem com algumas que nada lhes dizem e de nada lhes servirão ao longo de sua vida).

E por que “Merlí” consegue esse êxito?  O personagem-título é um professor de filosofia de 58 anos, divorciado, desempregado, quase um sem-teto ao começar a série (disponível na plataforma Netflix). Mas em 40 capítulos espalhados por três temporadas, ele entusiasma seus alunos. E o segredo é simples: cada episódio tem o nome de um filósofo, cujas ideias poderiam ser resumidas talvez em 15 linhas, mas que entram em contato direto com as vivências dos estudantes. Filosofia é vida, como queria Nietzsche, não por acaso o guru de Merlí.

Divulgação/ Netflix

highlights. O maior deles talvez seja o episódio do suicídio. A caminho da escola, três alunos veem um homem se matar. O diretor, sabendo disso, pede que os professores minimizem, relativizem o acontecido. Merlí faz exatamente o contrário: cita Albert Camus e sua frase, segundo a qual a principal questão filosófica é a do suicídio. Pois se trata da pergunta pelo sentido da vida. Ateu, Merlí recusa a religião como fornecedora de sentidos prontos e acabados. Porém, mais tarde, entra num táxi cujo motorista acredita firmemente em Deus. E, para não dar spoiler, o mínimo a dizer é que a convicção ateia de Merlí vai ser fortemente questionada.

Quarenta olhares sobre a adolescência, mas não só: sobre a vida, a fim de transformar os jovens em adultos responsáveis. A série não esconde conflitos. Cada capítulo tem pelo menos um enfrentamento, por vezes duro. Mas o interessante é que praticamente todos os conflitos se terminam por um encontro, um acordo, uma amizade que sobrevive e até se fortalece.

Em nenhum momento, o teor do conflito é minimizado. Discípulo de Nietzsche, Merlí não esconde o agon, a guerra. Não faz do conflito mero mal-entendido. Mas, ao fim do capítulo, há uma reconciliação e, sobretudo, uma síntese – curiosamente, aquilo que em Hegel recolhe o melhor do que havia nos termos opostos da dialética, para produzir sua convergência numa unidade superior. (Nietzsche resultar em Hegel é, filosoficamente, um paradoxo, mas que funciona justamente porque a série inova, cria, não se prende ao cânone). A importância desse modo narrativo para que os jovens saibam não rifar suas divergências, não se curvar aos poderes existentes, mas também dialogar e firmar pazes, é enorme.

O sexo tem destaque na série. Alguns dos jovens já têm uma vida sexual – uma moça tem até um filho, que cria sozinha. Não acontece que a vida sexual seja mais fácil para os rapazes do que para as moças: nos dois casos, há quem transe faz tempo e quem seja virgem, quem faça amor e quem faça sexo. Mas não me lembro de episódios de possessividade ou de machismo pronunciado. Mesmo a homofobia é praticamente ausente, sendo respeitadas as orientações sexuais mais diferentes. O próprio ciúme é muito raro e jamais gera atitudes agressivas. Esse assunto é importante porque qualquer tentativa de pensar um ensino médio que fale realmente aos jovens, se não levar em conta o sexo, será vista por eles como um tanto mentirosa.

Divulgação/ Netflix

E termino com uma experiência pessoal. Quando fui ministro da Educação, certa vez recebi quatro deputados que se diziam da bancada católica (fiz questão de lhes dizer que devia haver pelo menos 300 ou 400 parlamentares católicos, eles não eram “a” bancada). Seu tema: proibir toda educação sexual na escola, só deixar a biologia. Disse a eles que, se não falássemos na experiência humana com o sexo, se não entrássemos na cultura, ficando apenas na natureza, a juventude continuaria sendo devastada por esses flagelos que são a gravidez precoce e indesejada, resultado em abortos ou em vidas truncadas, o abuso sexual sob várias formas e, finalmente, a transmissão de doenças graves, até mesmo fatais. Eles pareceram concordar, mas, no fim das contas, seguiram contrários a uma formação mais completa dos jovens. Meu ponto: não devemos ter medo deles ou do que eles façam. O papel da educação é justamente o de fazer os jovens crescerem e tomarem suas próprias decisões. Merlí contribui muito bem para isso.

Renato Janine Ribeiro

Ex-ministro da Educação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Universidade Federal de São Paulo

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