Cultura nacional e pensamento social

Por duas vezes abordei nesta coluna a questão das culturas nacionais, ora a propósito do contraste entre o Brasil e a Argentina, ora a propósito da dimensão cristã da identidade estadunidense. Mas não tratei da importante relação que as culturas nacionais entretêm com o pensamento social em geral e as ciências sociais que se constituem em seu âmbito.

Para a antropologia é muito vital a reflexão sobre esse tópico, dada a grave consciência que ela cultiva a respeito das condições de produção de seu pensamento, da construção de suas hipóteses e modelos, do estatuto de suas interpretações.

O saber antropológico se constrói por meio da subjetividade de seus praticantes, tanto quanto dos universos empíricos sobre os quais se debruça. Essa condição envolve muitas propriedades, de gênero, de classe social, de formação teórica – e também, embora de modo menos evidente, de pertencimento a uma ‘cultura nacional’.

O saber antropológico se constrói por meio da subjetividade de seus praticantes, tanto quanto dos universos empíricos sobre os quais se debruça

Por mais arbitrárias que sejam as marcas escolhidas pelas comunidades nacionais para simbolizar sua identidade contrastiva, elas se naturalizam e passam a imprimir qualidades e tons específicos a tudo o que abarcam, mesmo no nível mais abstrato e crítico de tais produções.

A antropóloga Mariza Peirano dedicou-se particularmente ao caso da antropologia brasileira, em que reconheceu uma injunção de ‘explicar a nação’, de explorar a singularidade nacional. Esse traço distingue fortemente a antropologia que aqui se faz de outras tradições nacionais, como as metropolitanas, cuja autoconfiança histórica e experiência colonial suscitaram uma atenção privilegiada à periferia do mundo ‘civilizado’.

Pensamento social

Peirano contrastou o caso brasileiro sobretudo com a Índia, cuja antropologia estudou de perto. É um exemplo privilegiado, pela sua importância numérica, pela sua qualidade e pela situação também periférica. Aqui como lá, comparar a produção antropológica exige envolver outros tipos de produção intelectual, no quadro do que se chama de ‘pensamento social’.

Trata-se de obras de alta qualidade intelectual, intensamente reflexivas, que se dedicam à interpretação dos fenômenos sociais, mesmo sem fazê-lo com os instrumentos mais especializados das ciências sociais. Em muitos casos, trata-se de uma produção que antecede a formação de campos científicos estruturados ou que acompanha os seus tempos heroicos originais.

Entre seus autores podem se encontrar artistas em cujas obras um peculiar traço investigativo ou reflexivo se encontra entranhado. Personagens como Mário de Andrade no Brasil, Octavio Paz no México ou Rabindranath Tagore na Índia são tão criativos e lúcidos intérpretes de suas sociedades quanto qualquer cientista social treinado universitariamente. Mas os seus próprios estilos de enfrentar as sociedades de origem trazem as marcas das culturas de que se abeberam, na escolha das temáticas, no peso relativo das tradições evocadas, no diálogo com as culturas metropolitanas.

Excetuando-se as antropologias da França, da Inglaterra e dos EUA, as comunidades brasileira, indiana e mexicana são certamente as mais prolíficas e notáveis. E, como entre os três autores citados, que diferenças marcantes não as distinguem entre si!

'A conquista do México', de William Prescott
‘A conquista do México’, obra do norte-americano William Prescott. A violência da ocupação espanhola do país praticamente destruiu a cultura letrada nativa, impondo-lhe uma dimensão exógena muito entranhada que marca a antropologia mexicana.

Em primeiro lugar, as ‘comunidades imaginadas’ que constroem são projetadas de maneira muito diversa no tempo/espaço. Tanto na Índia como no México, pesa o enfrentamento secular entre as poderosas culturas autóctones e a colonização. Mas, no caso da Índia, são culturas altamente letradas, expostas recentemente e de maneira mais superficial ao peso da cultura inglesa.

Já no caso do México, a violência da ocupação espanhola praticamente destruiu a cultura letrada nativa, impondo-lhe uma dimensão exógena muito mais entranhada do que no caso indiano. Também na Índia, a vasta extensão territorial estrategicamente situada no meio do continente asiático fez ali colidirem grandes movimentos civilizacionais, entre os quais o da invasão muçulmana.

No caso brasileiro, a ocupação portuguesa não enfrentou estruturas de ‘império asiático’ dotadas de letramento institucionalizado. Por outro lado, a nação emergente importou numerosa população africana, em regime de escravidão – o que veio a distingui-la da servidão colonial imposta ao campesinato mexicano e do estruturante regime de castas indiano. 

Diálogo simétrico x filão desgarrado

Todas essas histórias foram, porém, muito mais complexas, apresentando múltiplas linhas de interpretação. No Brasil, o naturalista alemão Carl Friedrich von Martius propôs, em meados do século 19, o chamado “mito das três raças”, em que a identidade brasileira decorreria da combinação entre o indígena, o português e o africano.

Na Índia, o confronto entre a narrativa hegemônica do hinduísmo, com sua rica literatura, e narrativas alternativas, como a islâmica, levaram inclusive à traumática partição com o Paquistão, logo após a 2ª Grande Guerra.

O México enfrentou uma permanente tensão entre a cultura crioula da elite e as culturas nativas, populares, além de arcar com os ponderáveis desafios de ser a fronteira física da América ibérica com os EUA.

Entre nós, é a especificidade que se impõe, coerentemente com a visão cultural que nos é própria, de um filão desgarrado, à cata da grande matriz cultural ocidental

Essas considerações me vieram à mente ao ler um dos livros de Veena Das, uma das mais importantes antropólogas indianas, radicada atualmente nos EUA. Aborda aí eventos traumáticos da história recente de seu país, como os massacres que se seguiram ao assassinato da dirigente política Indira Gandhi.

Há muitas propriedades pessoais úteis para entender o modo como se dirige aos problemas sociais interpretados, como seu gênero ou sua condição de brâmane. Há, porém, uma, mais abrangente, que certamente dá um tom muito peculiar a sua antropologia – e, de um modo geral, à de seu país.

Em toda a análise, centrada particularmente nas relações entre gênero e violência, há uma disposição universalista dominante, em que não reponta quase nenhuma ênfase na especificidade de tal ou qual dimensão cultural dos eventos examinados, mas sim sua capacidade de ecoar questões universais da condição humana. Não é à toa que uma referência analítica constante seja a da filosofia ocidental, particularmente encarnada pela obra do austríaco, radicado na Inglaterra, Ludwig Wittgenstein.

Veena Das
A disposição universalista que predomina nas análises da antropóloga indiana Veena Das contrasta com a ênfase na singularidade nacional que marca a antropologia brasileira.

Não encontro praticamente nenhum exemplo de uma análise antropológica com esse tom na intensa produção brasileira. Entre nós, é a especificidade, produzida na comparação, que se impõe, coerentemente com a visão cultural que nos é própria, de um filão desgarrado, e à cata de identificações, da grande matriz cultural ocidental.

Lá, pelo contrário, é a afirmação de uma identidade alternativa, digna de um diálogo simétrico, que tende a ser buscada. Felizmente, tanto de uma posição como da outra pode emergir uma sólida antropologia, capaz de revelar as propriedades de seus objetos… e de seus sujeitos.

Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões de leitura:
Bonfil Batalla, Guillermo. El México profundo, una civilización negada. Cidade do México, Editorial Grijalbo, 1987.

Das, Veena. Critical events. An anthropological perspective on contemporary India. Oxford, Oxford University Press, 1995.

Das, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2008.

Peirano, Mariza G. S. Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Brasília, Editora UnB, 1991.

Moreira-Leite, Dante. O caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia. São Paulo, Pioneira, 1976.