Culturas da ciência e antimaláricos

Algumas das mais interessantes contribuições ao conhecimento científico se dão nas fronteiras interdisciplinares, apesar das dificuldades que tais investimentos enfrentam (Ver coluna ‘Museus, culturas, antropologias’). São ainda mais notáveis quando conseguem se constituir na intersecção das ciências naturais e humanas, tão distintas em suas estruturas conceituais e métodos de conhecimento.

Acabo de examinar uma tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz (‘Resignificando a Natureza: a história da P&D de medicamentos antimaláricos a partir da Artemisia annua – 1960 a 2010’), em que Ivone Manzali de Sá, com formação em farmacologia, botânica e antropologia social, dispôs-se a enfrentar um tópico fascinante da história recente das ciências médicas ocidentais: a transição dos tratamentos da malária baseados no eixo bioquímico do quinino (oriundo da Rubiacea Cinchona spp., ou quina) para o eixo bioquímico da artemisinina (oriunda da Asteracea Artemisia annua L.). 

Algumas das mais interessantes contribuições ao conhecimento científico se dão nas fronteiras interdisciplinares, apesar das dificuldades que tais investimentos enfrentam

A história da ciência é uma área particularmente propícia para investimentos dessa monta, ganhando particular sabor e densidade quando dispõe o seu cultor de um complexo domínio transdisciplinar.

A reconstituição histórica foi empreendida por meio de trabalho arquivístico, de bibliografia original e de entrevistas com participantes dos processos examinados, recobrindo as áreas da farmacologia, da química dos produtos naturais, da fitoquímica e da fitomedicina.

A autora inspirou-se fortemente na epistemologia histórica do imunologista polonês Ludwik Fleck, lançando mão particularmente dos conceitos de “estilo de pensamento” e de “coletivo de pensamento”, que ensejam tão rica ponte com as análises antropológicas das culturas eruditas ou dos campos de saber (como no trabalho do sociólogo francês Pierre Bourdieu) e com as grandes e posteriores construções analíticas em filosofia da ciência devidas ao estadunidense Thomas Kuhn e ao francês Michel Foucault.

Paradigma do princípio ativo

O uso secular do quinino como medicamento antimalárico na história ocidental cedeu lugar progressivamente a diversas sínteses químicas baseadas na sua estrutura molecular, obedecendo ao mesmo grande processo de sintetização das substâncias naturais que acompanhou a idade de ouro da química moderna.

Paradigma do princípio ativo
Como exemplo do ‘paradigma do princípio ativo’ está o desenvolvimento de antimaláricos a partir do quinino, isolado da quina. O uso dessa substância cedeu lugar a diversas sínteses químicas baseadas na sua estrutura molecular, seguindo o modelo da ciência ocidental. (imagem cedida por Ivone Sá)

Entre os diversos problemas práticos dessas terapêuticas estava a resistência que as diferentes espécies e cepas do parasito difusor da malária podiam desenvolver em certas circunstâncias, e que exigia a pesquisa de novas fórmulas alternativas e de novos métodos de ministração dos medicamentos.

Em 1961, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a generalização da resistência à cloroquina, molécula sintética que dominara esse campo terapêutico desde a Segunda Guerra Mundial (embora derivada de sínteses anteriores, desenvolvidas pela indústria alemã nos anos 1930).

Nos anos 1970, ocorreu a síntese, por pesquisadores chineses, de uma nova substância, derivada de uma planta da farmacopeia tradicional daquele país: a artemisinina. Essa descoberta estimulou a imaginação dos países ocidentais, sobretudo a partir do momento em que o estabelecimento de relações diplomáticas entre os EUA e a China, por um lado, e as novas orientações da política medicamentosa da OMS proclamadas na Conferência de Alma-Ata (1979), por outro, davam novo alento ao diálogo da biomedicina ocidental com as medicinas tradicionais – e particularmente com a chamada “Medicina Tradicional Chinesa”, que resultara de uma política de Estado do regime maoísta visando produzir uma articulação fértil entre a medicina ‘ancestral’ chinesa e a ciência ocidental.

É a partir desse nódulo histórico que a tese de Ivone Sá passa a percorrer o fascinante confronto entre as perspectivas científicas hegemônicas no Ocidente, voltadas para a síntese de ‘princípios ativos’ isolados ou alternativos à totalidade orgânica original, e o fundamental reconhecimento pela medicina chinesa de uma certa dimensão relacional, integrada e holista na pesquisa médica e farmacológica.

Essa alternativa cultural (e epistemológica, no caso) ao paradigma do ‘princípio ativo’ encontrou eco nos movimentos ocidentais ligados à difusão do ideário neoromântico, por meio da contracultura e do humanitarismo ‘ecológico’ de muitas das novas organizações não governamentais.    

Assista a um vídeo sobre o Projeto 523, conduzido secretamente por pesquisadores chineses nos anos da revolução cultural

Paradigma do sinergismo

O processo estrutural de tensão entre os produtos naturais e as sínteses químicas, presente no Ocidente desde o século 19, corresponde às lutas pela “resignificação da natureza” do título da tese. No interior da própria ciência dominante, surgiram recentemente novos horizontes, envolvendo o “paradigma do sinergismo”, nas fronteiras da biologia de sistemas, da metabolômica e da pós-genômica, implicando percepções mais holistas ou integradas da relação entre os organismos produtores de recursos terapêuticos e os organismos pacientes de processos terapêuticos – uma outra natureza, talvez menos mecanicista.

Esse processo, em si mesmo tão estimulante, de confronto entre culturas ou epistemologias científicas diversas, se desenrola em um contexto de confronto também entre culturas nacionais e entre a tradicional ‘biopolítica’ de saúde ocidental e o novo estilo de ação das ONGs humanitárias (como os Médicos sem Fronteiras citados na tese). Esse novo estilo, mais atento às inter-relações significativas dos sistemas terapêuticos e sanitários, influencia a ação da própria OMS e desencadeia novas dinâmicas na produção de fármacos.

Esse novo estilo, mais atento às inter-relações significativas dos sistemas terapêuticos e sanitários, influencia a ação da própria OMS e desencadeia novas dinâmicas na produção de fármacos

Uma dimensão importante do trabalho de Ivone Sá é a comparação entre a estrutura metropolitana ocidental de pesquisa e desenvolvimento, fortemente atrelada – como nos EUA – à indústria farmacêutica e aos interesses comerciais das patentes; a estrutura chinesa contemporânea, ciosa da autonomia nacional, do valor da cultura terapêutica tradicional e da articulação sinérgica dos elementos; e a estrutura brasileira, fortemente dependente dos desenvolvimentos exteriores, hesitante e instável em sua política de Estado para a ciência e para a saúde, e só muito raramente bem-sucedida em seus esforços na luta antimalarial – no entanto tão crítica.

A esperada publicação dessa tese poderá ser um grande estímulo, tanto à reflexão sobre os destinos contemporâneos da biomedicina mecanicista, quanto sobre a política de P&D exigida de uma nação com problemas públicos e com potencial científico de tão grande magnitude quanto o Brasil.


Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões de leitura:

Fleck, Ludwik. Genesis and development of a scientific fact. Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1979 [1935].

Elisabetsky, Elaine. Traditional medicines and the new paradigm of psychotropic drug action. In: Iwu, M. M., Wootton, J. (orgs.) Ethnomedicine and drug discovery. Amsterdam: Elsevier Science BV, 2002.

Koyré, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

Knorr-Cetina, Karin. Scientific communities or transepistemic arenas of research? A critique of quasi-economic models of science. Social Studies of Science, 12, p.101-130, 1982.

Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1972.