De Lord Kelvin a Fert e Grünberg

Até chegar ao Nobel de Física de 2007, a magnetorresistência fez uma longa jornada. Deixou de ser algo quase imperceptível, quando foi descoberta pelo britânico William Thomson (1824-1907), para se transformar em magnetorresistência gigante, depois que as equipes lideradas por Albert Fert e Peter Grünberg a descobriram em experimentos diferentes e independentes.

O britânico William Thomson, mais tarde conhecido como Lord Kelvin, descobriu em 1857 o fenômeno conhecido como magnetorresistência.

Em 1857, nove anos antes de se tornar Lord Kelvin, Thomson mediu a resistência elétrica do ferro e do níquel imersos em um campo magnético. Descobriu que a resistência aumentava quando a corrente elétrica era paralela às linhas do campo magnético, e diminuía quando ela era perpendicular. O fenômeno passou a ser conhecido como magnetorresistência anisotrópica.

Vinte e dois anos depois, Hall descobriu o efeito que hoje leva o seu nome e que tem a ver com a magnetorresistência. Embora esse fenômeno tenha despertado razoável interesse científico, suas primeiras aplicações tecnológicas surgiram apenas um século depois, com a indústria de semicondutores e sobretudo com os cabeçotes de gravação e leitura magnética.

Essa tecnologia começou a mostrar seu esgotamento por volta de 1999, quando a indústria teve a necessidade de gravar 5 gigabytes em uma área de uma polegada quadrada. Por sorte, naquele ano, entravam em cena os cabeçotes de leitura de válvula de spin, conseqüência das descobertas de Fert e Grünberg.

Um velho conhecido
Magnetorresistência é um tema antigo na vida científica de Albert Fert. Seu primeiro trabalho nessa área, publicado em 1970, já abordava o efeito da orientação do spin do elétron sobre a magnetorresistência em amostras de níquel contendo impurezas de ferro, cobalto, manganês e cromo. Não é surpresa, portanto, que ele tenha saído na frente na explicação do fenômeno por ele denominado magnetorresistência gigante (GMR, na sigla em inglês).

No trabalho publicado em 1988 na prestigiosa Physical Review Letters (conhecida entre os físicos simplesmente como PRL) – e cujo primeiro autor é Mario Norberto Baibich, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) –, eles propõem que a GMR é uma conseqüência do espalhamento do elétron, e que este depende da orientação do seu spin em relação à orientação da magnetização em cada camada de ferro.

Mas como isso resultou nos cabeçotes de leitura magnética nos discos rígidos de alta densidade? Já veremos isso. Antes de chegar à fábrica, porém, vejamos o trabalho no laboratório. Em primeiro lugar, a amostra usada pela equipe de Fert era formada por vários “sanduíches” de ferro e cromo, conforme representa o esquema abaixo. Mais de 20 desses sanduíches foram empilhados sobre uma base de arseneto de gálio (AsGa). Como me disse o Baibich, esse substrato não foi escolhido por acaso.

‘Sanduíches’ de ferro e cromo usados pela equipe de Fert no experimento em que foi descrita a magnetorresistência gigante.

O AsGa cristaliza-se na forma de um cubo, cuja diagonal das faces é aproximadamente igual à aresta do cubo de ferro e do cubo de cromo. Isso torna possível o que se chama de crescimento epitaxial, ou seja, átomos de ferro e de cromo assentam-se quase perfeitamente sobre átomos de arsênio e gálio.

Verificou-se depois que não há necessidade de todo esse cuidado para se observar o fenômeno, mas Fert e seus colaboradores sabiam muito bem que, nas medidas pioneiras, todo o cuidado é pouco. Dependendo da espessura do cromo, as camadas de ferro acoplam-se ferromagneticamente (magnetizações no mesmo sentido) ou antiferromagneticamente (em sentidos contrários).

Na verdade, o acoplamento oscila, ora de uma forma, ora de outra, à medida que cresce a espessura de cromo, até certo limite, quando a separação entre as camadas de ferro é tão grande que não ocorre o acoplamento magnético. Essa oscilação foi experimentalmente demonstrada por inúmeros pesquisadores em diferentes tipos de multicamadas.

Divisão justa
O acoplamento antiferromagnético nesse tipo de estrutura foi pioneiramente descoberto por Grünberg e seus colaboradores e descrito em trabalho publicado em 1986, também na PRL, de forma que o Nobel foi bem dividido. A descoberta tem duas propriedades importantes, cada uma descoberta pioneiramente por um dos premiados: acoplamento antiferromagnético entre camadas de ferro separadas por camadas de cobre e magnetorresistência gigante.

Nas amostras com acoplamento antiferromagnético, é possível fazer com que as magnetizações fiquem todas orientadas no mesmo sentido, como se o acoplamento fosse ferromagnético – basta aplicar um campo magnético externo com intensidade apropriada. Fert e seus colaboradores observaram que a resistência elétrica da amostra na condição de acoplamento antiferromagnético era 50% maior do que no caso ferromagnético.

A essa altura, os engenheiros e os físicos com elevado senso prático tiveram uma idéia genial. Se uma camada magnética ficasse com a magnetização fixa e a outra ficasse livre para alterar a orientação sob o efeito de um campo magnético externo, o dispositivo poderia ser utilizado como sensor de campos magnéticos. Bastava achar uma maneira de medir a mudança de orientação da camada livre. E qual era a maneira? Ora, a GMR!

Cabeçote com válvula de spin,  usado na leitura de dados gravados em suporte magnético.

Se a resistência elétrica do dispositivo fosse baixa, a camada livre estaria com a orientação no mesmo sentido da camada fixa. Se a resistência fosse alta, a orientação seria inversa. Esse tipo de dispositivo foi denominado de válvula de spin. Uma equipe da IBM saiu na frente e patenteou o primeiro cabeçote de leitura magnética com válvula de spin.

Atualmente existem várias patentes, com diferentes tipos de materiais, mas o princípio é o mesmo. Como na ilustração ao lado, existe uma material antiferromagnético (MNFe) que “segura” a magnetização da camada fixa (Co). Depois tem a camada, condutora, não magnética (Cu), e finalmente a camada livre (NiFe).

Discos rígidos
No disco rígido, a informação é gravada no formato binário. Cada domínio é magnetizado em determinado sentido (bit “0”) ou no sentido inverso (bit “1”). A magnetização do domínio produz um campo magnético, como se fosse um ímã. Quando o cabeçote passa sobre a trilha do disco, a camada livre orienta sua magnetização no mesmo sentido do bit gravado no disco.

Se o bit estiver no mesmo sentido da magnetização da camada fixa no cabeçote, a resistência é mínima. Caso contrário, a resistência é máxima. Como a sensibilidade da válvula de spin é muito alta, basta que uma pequena região do disco esteja magnetizada para ser percebida pelo cabeçote.

A aplicação da magnetorresistência gigante permitiu aumentar imensamente a capacidade de armazenamento de dados dos discos rígidos de computador.

Isso implica que podemos colocar uma grande quantidade de bits em uma pequena área, e impulsionar um mercado mundial superior a 100 bilhões de dólares anuais. É possível colocar mais de 300 gigabytes em um disco rígido com diâmetro de duas polegadas e meia.

Contribuições brasileiras
E como anda o Brasil nessa história? Anda bem! Talvez este seja o único caso, ao menos na física, em que parcela significativa dos pesquisadores brasileiros esteve envolvida em um tema de pesquisa contemplada com o Nobel antes da premiação. A título de comparação, no caso das cerâmicas supercondutoras, houve contribuições brasileiras significativas para a literatura internacional, mas somente a partir de 1987, ano da premiação do alemão J. Georg Bednorz e do suíço K. Alexander Müller.

Já no caso da magnetorresistência gigante, entre 1988 e 2007, a base de dados da Web of Science registra 172 trabalhos com a participação de brasileiros, sendo o mais citado o artigo inaugural que relata a descoberta da magnetorresistência gigante, com a participação de Mario Baibich.

Vale ressaltar que esse levantamento leva em conta apenas os trabalhos recuperados com a palavra-chave “magnetorresistência gigante”. Um critério menos restritivo de busca recuperaria muito mais resultados. Para saber de onde vêm nossas contribuições, veja aqui o mapa brasileiro da magnetorresistência gigante.

Leia mais sobre magnetorresistência gigante:
Marcelo Knobel, Os superpoderes dos nanomagnetos. Ciência Hoje 159 , abril de 2000.
Marcelo Knobel, Aplicações do magnetismo, Ciência Hoje 215, maio de 2005.
Henrique Toma e Koiti Araki, O gigantesco e promissor mundo do muito pequeno, Ciência Hoje 217, julho de 2005.
Fred Furtado, Efeito gigante, aparelho minúsculo, Ciência Hoje On-line, 09/10/2007.
Adilson de Oliveira, A estranha magia do magnetismo, Ciência Hoje On-line, 19/10/2007.

Carlos Alberto dos Santos
Núcleo de Educação a Distância
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
26/10/2007