De novo

Não gosto muito de me repetir, mas, às vezes, é inevitável (colunistas de jornal fazem isso à exaustão). Dada a “volta” do debate, da desinformação e mesmo das ironias em relação à (ex-)“presidenta”, vou fazer um resumo da questão do gênero gramatical em português. Sei que é mais ou menos inútil, porque o debate não existiria se os adversários da flexão dessem uma espiada nos dicionários e gramáticas que eventualmente evocam para dar a impressão de que conhecem esses instrumentos que, de fato, desconhecem. Mas vou apresentar a questão em afirmações breves, com exemplos ilustrativos.

1) Gênero gramatical e sexo não coincidem. Para verificar a verdade desta tese, basta considerar que são femininas palavras como “arte / licença / sílaba” e masculinas palavras como “pedal / gravador / disco”. Nenhum dos objetos designados por estas palavras têm sexo (seja por nascimento, seja por “escolha”).

2) Não é verdade que o “o” final de palavra seja marca de masculino. Embora seja verdade que muitas palavras masculinas terminam em “o”, se aceitássemos que esta é a marca de masculino, com base em qual critério classificaríamos palavras como “revólver / pé / hospital”? E “poeta”?

Não é verdade que o “o” final de palavra seja marca de masculino

3) Há tempo, Mattoso Câmara defendeu que a marca de gênero é fundamentalmente o artigo anteposto: sabemos que “menino” é uma palavra masculina não porque termina em “o”, mas porque dizemos “o menino”.

4) John Martin, em “Gênero?” (o artigo pode ser encontrado aqui) alterou um pouco esta tese e mostrou que, a rigor, não há masculino (apenas ausência de marca) nem feminino (mas apenas casos marcados). Seu argumento leva em conta frases como “É proibido pisar na grama”, “Está cheio de criança na praia” e “Faz frio”, em que “preciso / cheio/ frio” não concordam com palavra masculina nenhuma: “proibido” concorda com sujeito oracional, “cheio / frio” não concordam com nada…

5) As marcas de feminino são várias, considerada a morfologia: palavras como “atriz / grandona / embaixadora” mostram isso.

6) Mas – questão muito importante – a única forma produtiva para marcar femininos é a desinência “-a”. Ou seja, este morfema é acrescentado à base da palavra (que usualmente chamamos de “masculino”). Daí uma forma como “presidenta”, derivada de “president + e + a (por meio de regras produtivas; mostrar isso demandaria outro texto – talvez eu faça isso na próxima coluna).

7) Até mesmo algumas bobagens mostram que esta é a forma produtiva: quando se quer inventar uma forma nova (como “estudanta” ou “inocenta”), seja para ironizar, seja por outra razão qualquer, o que se faz? Acrescenta-se o morfema “a”.

Uma palavra ou flexão nova destina-se a marcar uma diferença que existe ou a introduzir uma nova

8) Vale a pena fazer um acréscimo, que implica considerar outra questão, além do sistema gramatical: uma palavra ou flexão nova destina-se a marcar uma diferença que existe ou a introduzir uma nova. “Presidenta” ilustra isso: ou a forma quer designar uma mulher na presidência (se o caso existe – em geral, é o que acontece) ou ela quer “propor” uma distinção que ainda não foi feita (“tenenta”, digamos; e, no limite, “estudanta”).

9) Ler o capítulo do Curso de linguística geral, de Saussure, sobre o valor ajuda a entender isso (faço isso com as turmas do primeiro semestre na universidade em que trabalho – e os alunos logo entendem); também se pode abordar a questão considerando a tese de Humboldt de que se pode tratar a língua de dois ângulos: considerá-la “energeia” (uma espécie de programa ou máquina que produz ou gera formas) ou como “ergon” (o produto desta máquina). Quem, diante de uma forma como “presidenta”, pergunta se a palavra existe só vê a língua como “ergon”; quem tenta entender de onde a palavra vem e por que se propõe seu emprego vê a língua como “energeia”.

Qual é mesmo a dificuldade?

 

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas