Energia solar: lapso do laboratório para a fábrica

O Brasil enfrenta uma crise energética de grande e ainda incalculável proporção. A grande imprensa tem noticiado dificuldades na importação de equipamentos para instalações de energia solar, uma das possíveis tecnologias para enfrentar a crise. Nesse cenário, a questão que se deve colocar é: por que, com as condições ambientais e com a comunidade científica de que dispõe, o Brasil precisa importar esse tipo de tecnologia?

Não se trata de uma questão simples. Ela exige resposta, digamos, multifocal, passando pela sensível área da sociologia da ciência, aquele escorregadio e movediço terreno tratado com tanta maestria pelo sociólogo francês Pierre Félix Bourdieu (1930-2002). Tentarei aqui abordar um dos ângulos da questão, ou seja, pontuar momentos na recente história científica brasileira nos quais o país poderia ter trilhado o caminho que nos colocaria hoje na frente de batalha da competição tecnológica internacional na área da energia solar.

Por que, com as condições ambientais e com a comunidade científica de que dispõe, o Brasil precisa importar esse tipo de tecnologia?

O termo energia solar engloba muitas áreas científicas e tecnológicas, desde um simples coletor de radiação para aquecimento de água, até estudos de efeitos de tempestades solares na distribuição de energia na superfície terrestre. Considerarei apenas as células solares, dispositivos semicondutores com imensos interesses científicos, tecnológicos e comerciais, que têm o mesmo princípio de funcionamento do diodo e do transistor e foram inventados para uso comercial no final dos anos 1940, logo após as descobertas desses seus famosos congêneres.

Esse foi o período em que a pesquisa em física estava se institucionalizando no Brasil, nas universidades de São Paulo (USP) e do Rio de Janeiro, a antecessora da UFRJ. No início dos anos 1950, os recém-criados Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) privilegiaram investigações em física nuclear e física de partículas elementares. Pontificaram nessas áreas, entre outros, Mário Schenberg, em São Paulo, Cesar Lattes, José Leite Lopes e Jayme Tiomno, no Rio de Janeiro, e Gerhard Jacob, no Rio Grande do Sul.

A pesquisa na área de semicondutores passava longe dos objetivos científicos dos líderes nacionais, e não surpreende o pouco interesse despertado pelo Simpósio sobre Energia Solar, realizado em novembro de 1958 pelo Instituto Nacional de Tecnologia (RJ), sob os auspícios do CNPq. Não havendo no Brasil nenhum especialista em física de semicondutores, discussões sobre células fotovoltaicas ficaram fora da programação do evento, que se restringiu a debates sobre coletores e fornos solares.

Olhando em retrospectiva o que as mencionadas lideranças científicas produziram em suas áreas de atuação, é razoável supor que a ciência e a tecnologia de dispositivos fotovoltaicos talvez estivessem hoje bem mais avançadas se esta tivesse sido a área selecionada por eles. No entanto, longe de questionar suas decisões quanto à seleção de seus objetivos de pesquisa, temos de concordar que os temas científicos mais palpitantes nos anos 1940 e 1950 eram mesmo a física nuclear e a física de partículas elementares.

Da infância à idade adulta

A física de semicondutores encontrava-se na sua primeira infância. O primeiro artigo sobre o tema, registrado na base de dados Web of Science, é de 1947, ano de fabricação do primeiro transistor. O número de artigos cresceu linearmente até 1965, quando a produção quase duplicou. Em 1970, ocorreu uma explosão, com a triplicação de artigos em relação a 1969. Foi nesse período que a comunidade científica brasileira passou a investir em pesquisa nessa área, e em poucos anos a física de semicondutores passou a ter a maior concentração de pesquisadores no país.

Primeiro transistor
Primeiro transistor, produzido nos Laboratórios Bell (Estados Unidos) em 23 de dezembro de 1947. Esse dispositivo tem o mesmo princípio de funcionamento que as células solares. (foto: Unitronic – CC-BY-SA-3.0)

Considerando a literatura internacional, dá para dizer que, no final dos anos 1960, os dispositivos fotovoltaicos poderiam ter merecido mais atenção por parte de nossos cientistas. Não se pode alegar que se tratava de um assunto pouco instigante. E já era, naquela época, um tema voltado para aplicações industriais.

A fotocondutividade vinha desafiando a inteligência humana desde os anos 1830. Em 1883, foi construída a primeira célula solar, à base de selênio, com eficiência inferior a 1%. Ninguém entendia seu funcionamento, até que, nos anos 1940, se descobriu que ela funcionava como um transistor.

William Shockley, um dos pais do transistor e Nobel de Física de 1956, publicou um artigo seminal em 1961 sobre o limite teórico da eficiência de células solares com junções p-n. As células fabricadas até então tinham eficiência inferior a 10% e Shockley calculou que a eficiência máxima não passaria de 30%. Realizar cálculos similares com diferentes materiais semicondutores e planejar experimentos para testar os cálculos poderiam constituir rotas para a indústria brasileira de dispositivos fotovoltaicos.

No entanto, nossas principais lideranças científicas voltadas para a física de semicondutores estavam interessadas em outras questões teóricas e na também nascente ciência e tecnologia do laser. O grupo que surgiu na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no início dos 1970 teve amplo sucesso na criação de uma escola nacional, espalhando pesquisadores para várias partes do país, e contribuiu decisivamente para a instalação da indústria brasileira de laser.

O grupo da Unicamp adquiriu expertise para o aproveitamento tecnológico das células solares, mas a indústria jamais se sentiu à vontade para investir nessa tecnologia, sobretudo pela falta de uma política de incentivo por parte de agentes estatais

Penso que a indústria de células solares no Brasil talvez fosse hoje mais vibrante se o grupo da Unicamp tivesse se inspirado nos trabalhos de Shockley e não no também brilhante trabalho de Charles Townes, Nicolay Basov e Aleksandr Prokhorov, inventores do laser e ganhadores do Nobel de Física de 1964. Mas, pelo que diz Ivan Chambouleyron em artigo publicado em 1996, nada indica que o cenário seria muito melhor do que o atual. Grande conhecedor da área de células solares, Chambouleyron liderou um grupo de pesquisa na Unicamp, a partir do final dos anos 1970, dedicado ao estudo de diferentes tipos de materiais úteis para a fabricação desses dispositivos.

O grupo produziu muitos trabalhos científicos, adquiriu expertise para o aproveitamento tecnológico das células solares, mas a indústria jamais se sentiu à vontade para investir nessa tecnologia, sobretudo pela falta de uma política de incentivo por parte de agentes estatais.

Então, o cenário atual em que dependemos em grande escala da importação de tecnologia fotovoltaica não vem da falta de expertise nacional na ciência básica correlata. Vem de uma complexa conjugação de fatores, entre os quais a falta de empreendedorismo da indústria nacional e o limitado compromisso dos agentes estatais.

Em tempo: Depois que publiquei a coluna, lembrei de uma história que ouvi nos anos 1980, mas não lembro quem me contou. Em algum momento daquele período, a Alemanha ofereceu a construção de uma “vila solar” no Brasil. Consultores brasileiros e alemães visitaram o Nordeste em busca do melhor local, mas, ao final, as autoridades brasileiras não aceitaram a oferta. Na época, se falava que ela seria construída na Arábia Saudita. Fazendo uma busca na internet, encontrei um relatório e um artigo que talvez exibam a digital da desistência brasileira. (Atualizado em 09/02/2015)

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana