Muito barulho por quase nada

Bebês, criaturinhas sortudas, costumam ser protegidos de muito barulho. Recentemente, no entanto, algumas dezenas de bebês-ratos foram criados semanas a fio com ruído constante — e de propósito. Maldade de pesquisadores? Não exatamente. Edward Chang e Michael Merzenich, da Universidade da Califórnia (EUA), queriam estudar a importância da estimulação auditiva para o amadurecimento das regiões do cérebro que cuidam do processamento dos sons.

Já é sabido há algumas décadas que o cérebro se organiza conforme a estimulação sensorial que recebe: aprende a enxergar combinando os sinais dos dois olhos, desenvolve a capacidade de discriminar toques e até aprende a ouvir. Mesmo: à medida que escutam os sons da língua materna, as regiões auditivas do cérebro de bebês humanos aguçam sua habilidade de discriminar esses sons entre si, ao mesmo tempo que perdem o dom de distinguir entre sons de outras línguas. 

Até que ponto, no entanto, a audição normal é importante para o desenvolvimento das regiões auditivas do córtex cerebral? Dadas as dificuldades de criar animais de laboratório em silêncio absoluto, Chang e Merzenich resolveram tentar outra alternativa na pesquisa cujos resultados foram publicados em 18 de abril na revista Science : eles criaram ratinhos em ruído constante, ’desestruturado’, como o chiado do rádio fora de sintonia.

A lógica é que, ao que parece, o importante da estimulação sensorial para o cérebro não é sua intensidade, e sim seu padrão — sua estruturação em sons modulados, imagens que se movem coerentemente, cheiros que aparecem e desaparecem. Ao contrário, o ’ruído branco’, nome técnico do chiado do rádio, é totalmente não informativo — e, em volume suficiente, ainda tem a vantagem de abafar qualquer ruído incidental no quarto que hospeda os ratinhos.

Ratos começam a ouvir aos 12 dias de vida, e cinco dias antes disso os bichinhos de Chang e Merzenich já estavam imersos em ruído branco constante, tão alto quanto uma televisão ou ar-condicionado razoavelmente barulhento. Um mês e meio mais tarde, os pesquisadores mapearam o córtex auditivo dos animaizinhos e compararam sua organização com a do córtex de ratos da mesma idade criados com sons ambientes ’normais’ (para um laboratório, claro).

Era como se o cérebro dos animais criados com ruído branco não tivesse amadurecido nada. Seus neurônios não adquiriram a preferência habitual por sons graves ou agudos, e o córtex auditivo permanecia tão extenso quanto em animais que mal começaram a ouvir — e quase três vezes maior que o de animais da mesma idade criados em ambiente sonoro normal.

O ’congelamento’, no entanto, era prontamente reversível. Assim que o ruído foi desligado e os jovens, já com dois meses, voltaram a ouvir sons ’naturais’, o processo normal de amadurecimento do córtex auditivo foi retomado; aos quatro meses, ele era funcionalmente semelhante ao de animais criados com a riqueza de sons a que têm direito.

O ruído branco constante, portanto, retarda o amadurecimento do córtex auditivo e o mantém em seu estado mais ’infantil’, não especializado. Retardar o amadurecimento sempre parece algo indesejável, claro. Mas este é o melhor dos retardos: um atraso sem grandes conseqüências, recuperado tão logo o cérebro passe a ouvir sons estruturados e coerentes que, ao contrário do ruído branco, tragam alguma informação relevante.

Na verdade, a exposição exclusiva ao ruído branco acaba protegendo o córtex auditivo, que continua apto a se reorganizar de acordo com a estimulação sonora assim que ela se torne mais interessante que um simples chiado monótono. Sem o longo período de ruído branco, o córtex auditivo de ratinhos de um mês já teria amadurecido e, portanto, perdido a capacidade de se organizar de acordo com os sons que ouve. Graças ao ruído, a reorganização instruída pelos novos sons ainda pode acontecer em animais mais velhos.

Para o cérebro, o ruído branco pelo jeito é tão desestruturado que funciona como se simplesmente não houvesse som. Criar ratinhos num chiado constante, portanto, é de fato a alternativa mais próxima do silêncio absoluto. E ainda explica, por sinal, como gatos e humanos surdos de nascença podem ’milagrosamente’ aprender a ouvir mais tarde — e olha que até depois de adultos. Basta um implante eletrônico na cóclea (lá dentro do ouvido), muita paciência e um córtex auditivo ainda ’inocente’, congelado na primeira infância, ainda esperando que sons interessantes cheguem dos ouvidos pela primeira vez. E quem disse que ciência não faz milagre?

Fonte: Chang EF, Merzenich MM (2003). Environmental noise retards
auditory cortical development. Science 300, 498-502.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia