O lado solidário do cérebro

Pode ser um carinho, um corte, uma cara de nojo ou uma decisão errada. Pelo jeito, o cérebro de quem observa seus semelhantes fazendo ou sentindo algo nunca sai incólume da experiência. De acordo com vários estudos recentes, quando você vê alguém ser tocado, sentir dor, comer e não gostar ou apertar o botão errado, o seu cérebro, caro leitor, reage quase como se todas essas coisas estivessem acontecendo também com você.

Essa reação solidária do cérebro pode ser a base neurocientífica da empatia , conforme sugerem vários cientistas. Afinal, se regiões do cérebro que nos fazem ficar aflitos de dor também entram em ação ao vermos alguém se machucar, como não ficar incomodado face à dor alheia? Ajudado por essas ’sensações solidárias’ automáticas — porque basta olhar o vizinho para que elas aconteçam –, o cérebro nem precisaria recorrer a pensamentos elaborados para notar que seu vizinho pode estar perturbado.

Justamente por serem automáticas, aliás, essas sensações solidárias poderiam explicar por que a gente quase sente na própria pele o arrepio causado por uma tarântula subindo pelo braço de alguém, e até quando acha que é de mentirinha o bicho que passeia pelo peito do James Bond.

De acordo com um estudo franco-italiano-holandês publicado em abril na revista Neuron , observar uma pessoa ser tocada nas pernas não causa ativação das regiões do cérebro que representam diretamente as pernas — ou quem olha sentiria as próprias pernas serem tocadas. Mas a região que junta esses toques com a visão do corpo e seus movimentos, e portanto ajuda a criar a imagem do “este é o meu corpo”, esta sim é ativada tanto ao se ter as pernas tocadas quanto ao se ver um toque em pernas alheias.

Em tempo: infelizmente, os autores não puderam acompanhar as reações do cérebro ao ver a tal da tarântula passeando pelo James Bond. É que seria preciso compará-las com as reações do cérebro ao sentir tarântulas passeando pelo próprio corpo, o que requereria voluntários muito, mas muito corajosos, e também um tanto tolos para acreditarem — sem se mexer! — que “a aranha é mansinha, pode confiar”…

Embora a sensação solidária permita ao cérebro intuir facilmente o que os outros sentem, os pesquisadores, liderados pelo italiano Vittorio Gallese, não acreditam que essa tenha sido sua função original. Para o grupo, a empatia talvez seja uma capacidade não-planejada de um sistema que combina visão e tato para antecipar a sensação de ser tocado. O mesmo valeria para os sistemas que respondem à visão de movimentos alheios, que poderiam permitir o entendimento das intenções dos outros.

Ainda que a função original fosse outra, o princípio de ativar as mesmas regiões do cérebro quando se sente ou se faz, ou se vê alguém sentir ou fazer, também pode ter outra utilidade: o aprendizado por observação. Já é sabido que ver alguém fazer cara de nojo ativa regiões no cérebro que registram nosso próprio desgosto. Se você vir alguém comer e não gostar, portanto, seu cérebro já começa a desgostar daquela comida por antecipação. O que é muito útil, aliás: tirando adultos frescos e crianças em geral, se alguém torce o nariz ao comer, é porque o prato não deve mesmo ser recomendável.

Mas registrar os erros dos outros também é algo que o cérebro faz automaticamente, segundo estudo publicado na revista Nature Neuroscience em maio. Não importa se você mesmo aperta o botão ou vê quietinho outra pessoa fazer o mesmo: se o resultado é inesperado, e principalmente se é um erro, nosso detector-de-incongruências embutido no córtex cingulado anterior, na face interna de cada metade do cérebro, dá o alarme. O melhor é que, graças à reação solidária do cingulado anterior, quando chegar a sua vez de escolher qual botão apertar, você não precisará mais fazer tudo de novo: seu cérebro já errou antes, junto com o pobre do boi-de-piranha.

O único problema disso tudo é que, como as respostas solidárias do cérebro são automáticas, fica impossível deixar de sofrer junto com o coitado da vez no programa de perguntas-e-respostas. Se ele erra, o seu cingulado anterior erra junto. Se começa a sofrer, o seu cérebro sofre também. Não é à toa que a gente continua assistindo assim mesmo, e ainda se perguntando por quê: é que se eles ganham, o bobo do cérebro deve achar que ganhou também…

Fonte: HT vanSchie, RB Mars, MGH Coles, and H Bekkering. Modulation of activity in medial frontal and motor cortices during error observation. Nature Neuroscience 7 (5):549-554, 2004.

C Keyser, B Wicker, V Gazzola, JL Anton, L Fogassi, and V Gallese. A touching sight: SII/PV activation during the observation and experience of touch. Neuron 42:335-346, 2004.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia
05/11/04