Para que serve o sexo?

Uma das mais fascinantes questões da biologia evolutiva envolve as razões da manutenção da reprodução sexuada entre os seres vivos. Esse processo está associado a um elevado dispêndio energético (disputas territoriais, acasalamento e meiose) e expõe os indivíduos a uma série de riscos, como predação, parasitismo e ferimentos causados em disputas por fêmeas. Apesar disso, esse mecanismo é adotado por 95% das espécies multicelulares e apenas poucas espécies conhecidas de vertebrados adotam normalmente a reprodução assexuada.

A reprodução é o mecanismo que garante a transmissão das características genéticas de um indivíduo para sua prole. Os organismos que possuem os genótipos mais bem adaptados ao ambiente têm maior sucesso em sua reprodução e, com o passar do tempo, os genes que conferem essa vantagem evolutiva a seus portadores se tornam mais bem representados na população.

A plumagem dos pavões machos é uma das caracterísitcas valorizadas pela fêmea na seleção de um parceiro sexual.

A competição pela transmissão dos genes para as gerações futuras é acirrada e grande parte dos seres vivos investe uma parcela enorme de sua energia na reprodução. Para minimizar esse gasto energético, surgiram mecanismos que permitem que as fêmeas façam uma “seleção sexual” dos machos mais aptos para a sua reprodução. Como não é possível se avaliar diretamente os genes desses indivíduos, a seleção se baseia na expressão fenotípica de características como plumagem, coloração, chifres e uma série de comportamentos exibidos pelos machos durante o período de acasalamento.

Essas características, contudo, tornam esses indivíduos mais vulneráveis a predadores. Esse risco também é elevado durante o período em que as fêmeas ou o casal têm de cuidar de sua prole. Além disso, como a reprodução sexuada gera tanto machos quanto fêmeas, esse processo é menos eficiente para promover o crescimento populacional do que a reprodução assexuada (custo duplo do sexo). Portanto, se existem tantos riscos e gastos energéticos envolvidos com a reprodução sexuada, por que motivo os seres vivos não abdicam do sexo e passam a se reproduzir assexuadamente como as bactérias e outros organismos primitivos?

Sobrevivência a longo prazo
A razão por trás disso é o aumento da variabilidade genética associado à reprodução sexuada. A presença de populações geneticamente heterogêneas é um fator chave para a sobrevivência a longo prazo das espécies em nosso planeta. Quanto mais cópias diferentes de seus genes (conhecidas como alelos) uma espécie possuir, mais saudável ela será para enfrentar mudanças ambientais e novas pressões seletivas e por mais tempo ela evitará sua extinção.

Por um lado, a variabilidade genética na reprodução sexuada é gerada pela própria combinação dos genomas do pai e da mãe: cada zigoto formado da união de ambos apresenta um conjunto distinto e único de genes. Além disso, outro fator por trás dessa variabilidade é o compartilhamento de material genético entre cromossomos homólogos durante a fase inicial da meiose. Esse processo, conhecido como crossing-over , permite que sejam gerados gametas com um patrimônio genético diferente em relação ao dos pais.

Recentemente outras hipóteses têm sido sugeridas para explicar esse “paradoxo do sexo”. Uma possibilidade é que a reprodução sexuada, além de aumentar a variabilidade genética, também iniba o acúmulo de mutações deletérias em populações pequenas (hipótese de mutações determinísticas ou catraca de Muller). Ela permitiria ainda que os indivíduos se adaptem a ambientes com flutuações, evitando principalmente a competição com parasitas (hipótese da rainha vermelha).

Três espécies de lagarto do deserto do Novo México (EUA). A espécie do centro ( Cnemidophorus neomexicanus ) se reproduz apenas por partenogênese e é resultante do cruzamento das duas outras espécies ( C. inornatus , à esquerda, e C. tigris , à direita).

Algumas espécies mais evoluídas são capazes de se reproduzirem assexuadamente se as condições ambientais não estiveram propícias ou em ocasiões em que haja um desequilíbrio da razão sexual (número de machos em relação ao total de fêmeas) ou quando fêmeas migram para locais onde não existam machos disponíveis. Esse processo, conhecido como partenogênese (do grego “concepção imaculada” ― um nome infeliz!), ocorre naturalmente em muitas espécies, incluindo plantas, invertebrados e alguns vertebrados como peixes, anfíbios, répteis e, raramente, aves.

Partenogênese e variabilidade genética
A partenogênese é diferente da clonagem. Embora ela ocorra sem a participação de espermatozóides ― portanto, sem fecundação ―, os indivíduos gerados apresentam variabilidade genética obtida a partir do genoma materno. Porém, a prole formada por partenogênese possui dois conjuntos idênticos de cromossomos, ao invés de um grupo paterno e outro materno. Por esse motivo, em termos populacionais, a partenogênese está associada a uma diminuição da variabilidade genética.

A partenogênese poderá originar fêmeas ou animais de ambos os sexos, dependendo do sistema de determinação do sexo da espécie ― isto é, se as fêmeas são XX ou WZ ou os machos são XY ou ZZ. Os indivíduos concebidos pela partenogênese são férteis e podem se reproduzir sexualmente se as condições ambientais tornarem-se favoráveis novamente.

Mesmo espécies que não são naturalmente capazes de se reproduzir através de partenogênese podem fazê-lo quando são submetidas a ambientes diferentes ou a condições estressantes. Em dezembro, por exemplo, foi noticiada na revista britânica Nature a procriação por partenogênese de duas fêmeas de dragão de Komodo ― uma espécie para a  qual essa forma de reprodução nunca havia sido descrita ― em dois zoológicos ingleses.

A foto acima mostra o instante em que saiu do ovo um dragão de komodo gerado por partenogênese em zoológico britânico (foto: Ian Stephen / Nature ).

A partenogênese, apesar de possibilitar um rápido crescimento populacional sem os custos envolvidos com a reprodução sexuada, não permite que os indivíduos mantenham uma variabilidade genética para se adaptarem a ambientes instáveis, justificando a ocorrência apenas eventual desse tipo de reprodução. Porém, essa regra não se estende a todos os seres vivos que se reproduzem assexuadamente. As bactérias, por exemplo, que se reproduzem principalmente de forma assexuada, alcançaram um enorme sucesso evolutivo.

 

Partenogênese e células-tronco

 

Recentemente, tem sido proposta por alguns pesquisadores a utilização da partenogênese para a produção de células-tronco embrionárias humanas. Alguns grupos de pesquisadores, como o liderado por David Wininger, de uma empresa de biotecnologia de Maryland (EUA) conhecida como Stemron, estão tentando ativar a ocorrência de partenogênese em óvulos humanos a partir de estímulos químicos e elétricos.

 

Esses óvulos ― que nunca serão capazes de se desenvolverem até formar um embrião ― se dividem até o estágio de blastocisto, onde as células-tronco podem ser coletadas. Embora esse processo tenha sido realizado com sucesso em camundongos e macacos, em humanos essas células têm se mostrado pouco viáveis, podendo ser mantidas por apenas algumas semanas. Pode ser, no entanto, que no futuro esses obstáculos sejam superados e que sejamos capazes de utilizar esse mecanismo de reprodução assexuada para a produção de células-tronco essenciais para a cura de uma série de doenças humanas.

 

 

Jerry Carvalho Borges

Colunista da CH On-line 

12/01/2007

 

SUGESTÕES PARA LEITURA
Artigos relacionados a esta coluna no blog Aventuras da Ciência ( http://aventurasdaciencia.blogspot.com ): “Todos só pensam naquilo” e “Altruísmo e egoísmo moldando a evolução”.
Fangerau, H. 2005.Can artificial parthenogenesis sidestep ethical pitfalls in human therapeutic cloning? An historical perspective. J. Med. Ethics , 31:733-735
Kono, T. 2006. Genomic imprinting is a barrier to parthenogenesis in mammals. Cytogenetic and Genome Research ,2006;113:31-35
Murphy, R.W., Fu, J., Macculloch, R.D., Darevsky, I.S. Kupriyanova, L.A. 2000. A fine line between sex and unisexuality: the phylogenetic constraints on parthenogenesis in lacertid lizards. Zoological Journal of the Linnean Society , 130: 527–549.
Neiman, M. 2004. Physiological dependence on copulation in parthenogenetic females can reduce the cost of sex. Animal Behaviour , 67: 811-822.