Sobre memória, pressão alta e outros demônios

Congresso, reunião, pessoas, população, assembléia, encontro, grupo, massacre, conferência, companhia, convenção. Trinta, vinte e sete, vinte e quatro, vinte e um, dezoito, quinze, doze, nove, seis, três, zero (para que serviram esses números? Só para distraí-lo, caro leitor).

Agora, sem olhar para o parágrafo acima: de quais palavras da primeira frase você se lembra? Se sua pressão arterial for naturalmente normal ou baixa, provavelmente ’massacre’ será uma das primeiras a vir à mente — e neste caso, ’grupo’ e ’encontro’ talvez fiquem de fora da sua lista. Mas se você sofrer de hipertensão controlada, o ’massacre’ não levará nenhuma vantagem sobre as demais palavras quanto às chances de ser lembrado. Ao contrário, agora é a palavra ’grupo’ que tem uma chance 20% maior de ser lembrada por você do que pelos outros, não-hipertensos.

O que tem a pressão a ver com a memória? Talvez nada — diretamente. Mas betabloqueadores como o propanolol, um dos remédios mais utilizados para controlar a pressão arterial, parecem agir sobre a amígdala, uma estrutura cerebral que proporciona emoções negativas (não é a amígdala da garganta!), e acabar com a vantagem mnemônica que um conteúdo emocional negativo proporciona a certas palavras.
Quem diz são pesquisadores do Instituto de Neurologia de Londres e da Universidade Otto von Guericke, em Leipzig (Alemanha), em estudo publicado em 11 de novembro na revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences . A equipe avaliou a probabilidade de cada uma das palavras em listas como a que encabeça este texto vir a ser recordada por voluntários que, 90 minutos antes, haviam tomado uma pílula de propanolol ou de vitamina E como placebo. O experimento foi o chamado duplo-cego: nem os pesquisadores nem os voluntários sabiam se a pílula administrada continha a droga ou apenas placebo.

Outros estudos já haviam mostrado que palavras com conteúdo emocional negativo (que provocam uma reação da amígdala) são processadas mais intensamente do que palavras neutras pelo hipocampo, estrutura cerebral responsável pela formação de novas memórias e intimamente ligada à amígdala. É provavelmente esse processamento ’especial’ pelo hipocampo que permite o registro prioritário das palavras com teor emocional forte. Nesse caso, se o propanolol impede que a amígdala aponte ao hipocampo uma palavra como ’especial’, esta será processada como apenas mais uma palavra neutra — e tão (pouco) lembrada quanto as demais.

E por que a vantagem mnemônica de palavras ’emocionantes’ prejudicaria a memorização das palavras imediatamente anteriores? Talvez seja um problema de capacidade do hipocampo, que lida apenas com um número limitado de informações a cada vez. Desse modo, qualquer prioridade dada a uma palavra implica um desvio dos recursos recém-alocados às outras.

O curioso é que, com o propanolol, a priorização mnemônica que deixa de acontecer para a palavra ’emocionante’ acabe acontecendo para a palavra que a precedeu. Será um caso de distribuição retroativa de recursos do hipocampo? O fenômeno ainda não tem explicação.

Mas já tem implicação (um tanto ousada, certo, mas não menos interessante): isso quer dizer que há milhares de executivos e políticos hipertensos-porém-medicados por aí que poderiam estar lembrando muito bem de palavras negativas como ’corrupção’, ’desemprego’ e ’violência’ nos pedidos do povo, mas acabam lembrando mais é de qualquer outra coisa insignificante que lhes tenha cruzado as idéias antes. Aaaaaaah! Então tá explicado…

Fonte: BA Strange, R Hurlemann, RJ Dolan. An emotion-induced retrograde amnesia in humans is amygdala- and beta-adrenergic-dependent. Proceedings of the National Academy of Sciences USA 100, 13626-13631 (2003).

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia