O papo dos cachalotes

Imagine que, neste mês de setembro, teremos um grande festival de rock na cidade do Rio de Janeiro. Milhares de pessoas, com idades entre 18 e 60 anos, virão assistir a dezenas de shows de música por vários dias. O que motiva essas pessoas a assistirem aos shows e o que elas têm em comum umas com as outras? E mais: o que isso tem de semelhante com a vida social dos cachalotes?

Antes de falarmos dos cachalotes propriamente, vamos entender três conceitos em estudos sociais: homofilia, conformismo e marcação simbólica. Homofilia é um princípio das redes sociais, e diz que tendemos a ser semelhantes aos nossos amigos. Já o conformismo resulta do fato de uma pessoa mudar o seu comportamento ou as suas atitudes por efeito da pressão do grupo – é, portanto, uma forma de interação, um processo de influência inerente ao funcionamento dos grupos. Por fim, a marcação simbólica implica o conceito de semelhança: ser igual dentro do grupo e diferente das pessoas dos demais grupos.

De volta aos cachalotes, algumas informações básicas. Eles podem viver mais de 60 anos. Os machos alcançam a maturidade sexual entre 18 e 21 anos, com 11 a 12 metros de comprimento; as fêmeas, entre 7 a 13 anos e 8,3 a 9,2 metros de comprimento. Percebeu alguma semelhança com as sociedades humanas? É por aí mesmo. Sua estrutura social – como a de muitos primatas – está baseada em grupos matrilineares de fêmeas aparentadas e jovens, que frequentemente formam associações temporárias com outras fêmeas nas regiões tropicais. Enquanto isso, os machos ficam em águas da Antártica e do Ártico, alimentando-se das enormes lulas por lá encontradas. De vez em quando, eles vêm até as regiões tropicais para acasalar com as fêmeas maduras.

O que chama muito a atenção nesses grupos de fêmeas é o altruísmo entre elas, por exemplo, no cuidado quando algum membro do grupo está ferido ou no carinho com os bebês cachalotes – existem verdadeiras babás que tomam conta das crias enquanto as mamães estão mergulhando fundo para buscar lulas nas profundezas. Para se ter ideia da dimensão desses grupos, estudos que usaram foto-identificação dos cachalotes dos Açores (veja artigo na CH 150) mostraram que, ao redor das ilhas portuguesas, existem entre 300 e 800 fêmeas e jovens cachalotes.

Cachalotes
Um detalhe que chama atenção nessa estrutura social dos cachalotes é que as fêmeas cooperam muito entre si, cuidando umas das outras quando uma delas se fere e até atuando como babás dos filhotes enquanto as mães mergulham fundo para buscar alimentos. (foto: Gabriel Barathieu / Wikimedia Commons / CC BY-SA 2.0)

Nessas regiões, formam-se clãs que funcionam como unidades sociais que compartilham um repertório de vocalizações chamadas de codas. As codas são, na prática, a forma de linguagem entre os membros do grupo, ou seja, a maneira como eles se reconhecem e compartilham experiências. Dessa forma, é possível crer que os cachalotes dos Açores e das Galápagos, por exemplo, apresentam repertórios de vocalização bem diferentes. Assim, comparações entre as codas gravadas em diferentes áreas, mesmo que próximas, podem revelar quantos clãs existem e como eles interagem ente si. Diferentes formas de explorar o ambiente submarino e seus recursos podem ajudar a moldar esses clãs, que formam repertórios vocais diferentes (os repertórios de codas), que parecem ser transmitidos por meio de aprendizado social.

 

Linguagem aprendida

Um artigo publicado na Nature Communications desta semana avaliou 18 anos de gravações das codas dos cachalotes do Pacífico Norte, próximo às ilhas Galápagos, e mostrou níveis complexos de transmissão de informação das codas. A transmissão do repertório vocal pode se dar tanto por fatores genéticos como sociais, utilizando, no segundo caso, mecanismos tão complexos quanto os observados em culturas humanas.

A transmissão do repertório vocal pode se dar tanto por fatores genéticos como sociais, utilizando, no segundo caso, mecanismos tão complexos quanto os observados em culturas humanas.

Agrupamentos distintos de cachalotes com repertórios acústicos semelhantes, mirando-se em clãs escolhidos, surgem quando as baleias aprendem preferencialmente as codas mais comuns (conformismo) de indivíduos com comportamentos similares (homofilia).

Parece complexo, mas é exatamente como nós humanos agimos: falamos as gírias que nossos colegas de classe ou profissão usam, e assim passamos a ser mais facilmente aceitos no grupo. Usamos roupas mais parecidas com os outros indivíduos da nossa classe social e, dessa forma, somos mais facilmente identificados e passamos a trocar ideias e atitudes. Se nos reunimos para um grande show de rock no Rio, ali nos juntamos a outras pessoas que gostam desse tipo de música, de uma determinada banda, do seu estilo de falar e de se comportar socialmente. Cachalotes e humanos têm muita coisa em comum!

Notas

Cachalotes no Brasil
O mar do Brasil está cheio de cachalotes, mas não sabemos ainda quantificá-los ou identificar sua estrutura social. Carecemos de estudos tão complexos quanto este publicado na Nature. No entanto, sabemos que os cachalotes estão por toda nossa costa pelos encalhes frequentes e por avistagens realizadas pelos poucos programas de estudos disponíveis. Em 2001, um grande levantamento desses registros foi publicado, e procurou-se avaliar a idade dos que encalharam. Já tivemos até um encalhe em massa de 33 cachalotes no Rio Grande do Sul em dezembro de 1972! As conclusões do estudo citado apontam para uma provável sazonalidade do nascimento de filhotes no verão e outono. Outro resultado interessante sugere uma provável diferenciação da estrutura de crescimento dos nossos cachalotes quando comparada a outros estudos pelo mundo, o que implica na composição diferenciada do nosso estoque de cachalotes.

Moby Dick existiu?
Coincidências à parte, no mês de agosto passado um helicóptero flagrou um cachalote na região de Toulon, no Mediterrâneo, ao sul da França, que fez crer na lenda do grande leviatã branco, Moby Dick! Vale a pena conferir as fotos.

Salvatore Siciliano
Instituto Oswaldo Cruz,
Fundação Oswaldo Cruz