Parada estratégica

Quais caminhos a ciência deve ou não deve trilhar? Volta e meia essa questão vem à tona e, nas últimas semanas, a comunidade científica e a sociedade têm discutido um novo dilema – e dos grandes, com pitadas de censura e até de bioterrorismo. A polêmica envolve dois estudos com cepas do vírus H5N1 (responsável pela gripe aviária) alteradas para que pudessem ser transmitidas entre mamíferos. Realizadas independentemente no Centro Erasmus de Roterdã (Holanda) e na Universidade de Wisconsin-Madison (Estados Unidos), as pesquisas foram submetidas à publicação nas revistas Nature e Science.

O Painel Consultivo sobre Biossegurança dos Estados Unidos (NSABB, na sigla em inglês) solicitou a publicação de versões modificadas dos artigos, por medo de as informações serem utilizadas para o bioterrorismo. Pesquisadores de todo o mundo decidiram, então, pela paralisação de 60 dias nos estudos com essas cepas, como forma de protestar e permitir o debate da questão.

A publicação de detalhes do estudo e da sequência genética das cepasobtidas é fundamental para que outrosgrupos passem a estudar o assunto

Para muitos especialistas, a publicação de detalhes do estudo e da sequência genética das cepas obtidas – que o NSABB quer omitir – é fundamental para que outros grupos passem a estudar o assunto, o que pode melhorar a compreensão dos mecanismos de mutação do H5N1.

No fim da última semana, surgiu um novo capítulo da polêmica: o virologista japonês Yoshihiro Kawaoka, um dos líderes da pesquisa realizada nos Estados Unidos, publicou, na Science, um artigo opinativo defendendo a segurança da abordagem e a urgência de sua retomada.

“Temos que estimular os estudos sobre transmissão de vírus de influenza altamente patogênicos com urgência”, defende no artigo. Kawaoka destaca o ineditismo de sua pesquisa, realizada com furões, ao evidenciar que o H5N1 poderia desenvolver a capacidade de ser transmitido entre mamíferos – e, talvez, entre humanos – por via aérea.

Apesar de as variantes desenvolvidas em laboratório não se mostrarem muito virulentas (não causando a morte de nenhum animal infectado), o japonês ressalta a dificuldade de prever o efeito dessas cepas sobre o homem e a importância da vigilância. “Observamos algumas das mutações necessárias para a transmissibilidade do vírus em cepas circulantes, por isso, é preciso intensificar o monitoramento”, diz. “Acredito que seja uma irresponsabilidade não estudar e entender os mecanismos de mutação.”

Vírus H5N1
Artigos sob avaliação de revistas científicas podem ser fundamentais para compreender capacidade de mutação do vírus da gripe aviária. (foto: MEDICAL RF.COM/SPL)

Kawaoka também refuta os argumentos do NSABB. A ameaça do bioterrorismo não seria justificativa para restringir a divulgação dos resultados, uma vez que já há muito conhecimento sobre o vírus publicado. A proposta do governo americano para resguardar a confidencialidade dos dados – seu repasse apenas para indivíduos selecionados – também é criticada, pois essa seleção tomaria muito tempo e não impediria o vazamento das informações. “Já a divulgação na íntegra do estudo poderia atrair a atenção de pesquisadores de outras áreas para essa questão urgente”, avalia.

60 dias para reavaliação

O japonês explica que os pesquisadores concordaram com uma pausa de 60 dias nas pesquisas devido a toda a controvérsia gerada, “mas o trabalho continua urgente e não é possível desistir dele.” Durante essa pausa, organizações e governos ganharão tempo para discutir os desafios que surgem a partir desses estudos.

Em entrevista à CH On-line, o virologista argentino Daniel Perez, pesquisador da Universidade de Maryland (Estados Unidos) que também atua na área, ressalta que a interrupção não servirá apenas para reflexão.

Daniel Perez: “Não podemos dar oportunidade ao vírus para mudar sem que estejamos preparados”

“Nesse período, é preciso deixar clara a importância da pesquisa e definir mecanismos para assegurar sua realização. Não podemos dar oportunidade ao vírus para mudar sem que estejamos preparados”, avalia. Favorável à publicação integral dos dados, ele acredita que parte da polêmica atual está ligada a grupos que não conhecem a fundo os estudos em desenvolvimento.

O médico veterinário Lindomar Pena, pesquisador da Universidade Federal de Viçosa que trabalhou com Perez, defende a pesquisa e destaca o caráter imprevisível das mutações do vírus. “As linhas de estudo e as informações divulgadas podem ser restringidas, mas isso não vai impedir o aparecimento de novas variantes na natureza, como ficou claro na pandemia de influenza A H1N1”, alerta.

Para o virologista brasileiro José Nelson Couceiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, existe algum fundamento nas recomendações do NSABB. “Em relação ao terrorismo, a possibilidade é remota, pois seria necessário ter acesso a pesquisadores e instalações laboratoriais de ponta”, avalia. “No entanto, independente do histórico e por mais responsáveis que sejam as instituições, acidentes podem ocorrer. A pausa será importante para aprimorar a segurança, sem atrapalhar a pesquisa”, pontua.

Se, por um lado, a polêmica e a intromissão do governo na inovação científica podem desencorajar novas pesquisas na área, por outro, esse momento pode simbolizar uma oportunidade para enxergar a ciência em perspectiva.

Para Perez, a orientação da ciência deve passar pela opinião pública e pela interação respeitosa entre pesquisadores de diferentes campos. “A pesquisa, no entanto, deve ser norteada pelos fatos, não pelo medo”, enfatiza. E conclui: “A intervenção da sociedade e do governo nesse caso pode ajudar a aprimorar o campo, pois também é papel do cientista interagir com a mídia e com a população, para fornecer bases que permitam a tomada das decisões corretas”.

H5N1, ameaça latente
Os casos de infecção pelo vírus H5N1 começaram a ser detectados na Ásia em 1997, voltaram a ocorrer em 2003 e alcançaram um pico em 2006. Até hoje, são responsáveis por quadros respiratórios fatais em 60% dos casos, já tendo causado a morte de mais de 300 pessoas desde 2003. As infecções só acontecem pelo contato contínuo e próximo com aves e ainda não foi registrada a transmissão via aérea entre humanos.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line