Para entender o negacionismo do Holocausto

Departamento de História
Universidade de Brasília

Negar o Holocausto é o ovo da serpente das crescentes contestações atuais ao saber científico. Fenômeno que ganhou forma na França, principalmente entre a extrema-direita, logo após o fim da Segunda Guerra, a negação do genocídio dos judeus pelos nazistas se espalhou e persiste em vários países, abrindo as portas para outros negacionismos, como o ambiental, das ditaduras, da escravidão, da ciência etc. Combater esse fenômeno passa obrigatoriamente pela educação.

Crédito: Imagens Arolsen Archives

Poucos crimes na era contemporânea foram tão documentados quanto o Holocausto. O assassinato em massa de judeus por nazistas na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi registrado em telegramas, ofícios, cartas, ordens de execução, fotografias, plantas de construção de campos de extermínio, atas, entre outros itens que, hoje, estão em arquivos, bibliotecas e centros de documentação espalhados mundo afora. Só para se ter uma ideia, apenas um desses arquivos, o Arolsen Archives, possui mais de 30 milhões de peças.

Para além do que foi produzido pelo próprio Terceiro Reich, a documentação do Holocausto é composta por uma infinidade de testemunhos de sobreviventes e por consistentes pesquisas desenvolvidas por historiadores. Todo esse conhecimento vem servindo, há décadas, de base para livros, artigos, documentários, reportagens, exposições, filmes, peças de teatro e tantos outros produtos culturais que ajudam a compreender o genocídio.

Apesar da enorme materialidade do Holocausto e de seu lugar no imaginário social, há, hoje, indivíduos e organizações de diferentes ideologias que negam, na totalidade ou em parte, o Holocausto. São os chamados negacionistas.

 

Surgimento e expansão

Podemos dizer que os primeiros negacionistas do Holocausto foram os nazistas, em seu próprio tempo, pois evitaram, ao máximo, usar termos como “execução”, “assassinato”, “fuzilamento” ou “maus tratos”, substituindo-os por palavras e expressões que tentavam esconder o que eles realmente faziam. O mais famoso eufemismo nazista é “solução final”, empregado na documentação oficial para substituir “assassinato em massa”. O próprio Hitler, como já comprovaram os historiadores, preferia que muitas de suas ordens mais violentas fossem dadas oralmente e não por escrito. Ao fazer isso, o Führer demonstrava ter plena consciência de que suas ações eram absolutamente criminosas.


A negação do Holocausto enquanto um fenômeno político e militante começou a tomar forma somente depois da Segunda Guerra

Mas a negação do Holocausto enquanto um fenômeno político e militante começou a tomar forma somente depois da Segunda Guerra. Foi na França onde o fenômeno se manifestou pela primeira vez de modo mais evidente, graças a Maurice Bardèche (1907-1998). Durante a guerra, esse intelectual fascista contribuiu para um jornal antissemita e, após a libertação da França, foi sentenciado à morte, mas recorreu e passou apenas um ano na prisão. Essa notória diferença de sentenças, aliás, foi comum no imediato pós-guerra, sobretudo para intelectuais, que alegavam que seus trabalhos estavam restritos ao campo das letras.

Em 1946, Bardèche se torna referência para a nova direita europeia. Crítico do Tribunal de Nuremberg (que julgou as lideranças nazistas sobreviventes), ele passa a negar o extermínio dos judeus na guerra e expressa essas ideias em seu segundo livro, “Nuremberg ou a terra prometida (1948), um sucesso de vendas, mas, também, um escândalo: em 1952, a Justiça francesa baniu o título, multou Bardèche em 50 mil francos e o condenou a um ano de prisão. Ele cumpriu apenas algumas semanas da pena e seguiu negando o Holocausto em livros, panfletos, entrevistas e palestras.

Coube a outro francês, o escritor Paul Rassinier (1906-1967), ex-socialista e ex-pacifista, transformar de vez o negacionismo em movimento político e militante. Durante a ocupação nazista da França, Rassinier engajou-se em ações de resistência e acabou preso, em 1943, pela Gestapo, a polícia política nazista. Libertado do campo de Buchenwald em 1945, Rassinier adotou discurso nacionalista e antissemita e foi o principal representante da negação do Holocausto até́ os anos 1960. Em livros como “O verdadeiro julgamento de Eichmann ou os vitoriosos incorrigíveis” (1962) e “Os responsáveis pela Segunda Guerra Mundial” (1967), ele parte de sua experiência pessoal em campos de concentração como um “salvo-conduto moral” para afirmar que os judeus inflacionaram as histórias da repressão nazista, que os guardas dos campos de concentração foram responsáveis pela maioria das mortes e que as câmaras de gás eram invenção de um “estabelecimento sionista”.

Após a morte de Rassinier, um de seus discípulos, Robert Faurisson (1929-2018), então professor de literatura na Universidade de Lyon, assume o posto de referência negacionista. Primeiro negacionista oriundo de um meio universitário expressivo, ele ganhou fama internacional em 1979 ao publicar, no jornal “Le Monde”, o texto “O problema das câmaras de gás ou o rumor de Auschwitz”, no qual nega a existência dessas câmaras.

A partir de Faurisson, o negacionismo ganha novo impulso. Livros escritos por negacionistas passam a ser traduzidos (pelos próprios negacionistas e suas editoras) para diversas línguas, e o movimento se expande para os Estados Unidos, o Reino Unido, a Alemanha e até o Brasil. Nos anos 1980, a editora gaúcha Revisão publica vários livros antissemitas e negacionistas, logo proibidos pela Justiça.

 

Quem pratica e de que forma


O negacionismo é uma expressão política típica da extrema-direita, mas se manifesta, de forma menos estruturada e engajada, em círculos da extrema-esquerda, grupos católicos ultraconservadores e movimentos islâmicos fundamentalistas

O negacionismo, como se pode ver, é uma expressão política típica da extrema-direita, campo ideológico onde mais floresce, adquire força e se organiza. Porém, o fenômeno também se manifesta, ainda que de forma menos estruturada e engajada, em círculos da extrema-esquerda, grupos católicos ultraconservadores e movimentos islâmicos fundamentalistas. Alguns expoentes do negacionismo são figuras públicas, como o Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã de 2005 a 2013, e o bispo católico inglês radicado na Argentina Richard Williamson.

A negação do Holocausto ocorre de forma total ou parcial. Alguns negacionistas até reconhecem o sofrimento dos judeus, mas atribuem tal fato a causas conjunturais e não ao esforço intencional do Terceiro Reich – as mortes teriam sido causadas pelo frio, por doenças e pela má alimentação típica das épocas de guerras. Negam veementemente a existência das câmaras de gás e da política do Estado nazista de extermínio das comunidades judaicas. Quase todos negam o total de 6 milhões de judeus mortos – número que, de tão pesquisado, já é consensualmente aceito pela historiografia. Alguns se especializam em negar a autenticidade de testemunhos, como o de Anne Frank (1929-1945), numa tentativa de colocar em xeque outros relatos de judeus.

O negacionismo é quase sempre amparado em teorias conspiratórias, e ao “desbaratá-las”, os seus enunciadores se reconhecem como detentores de uma “grande verdade”, o que traria, porém, uma ambiguidade: se por um lado, isso os liberta de uma “grande mentira” contada desde os tempos de escola por “professores doutrinadores” comprometidos com uma “conspiração judaica”, por outro lado, são, por isso mesmo, perseguidos e caluniados pela “história oficial”.

Nega-se o Holocausto por diversos motivos. Para a extrema-esquerda e setores do fundamentalismo islâmico, a negação é quase sempre uma retórica política com objetivo deslegitimar o Estado de Israel. No campo católico ultraconservador, os lefebvrianos são os que mais costumam reproduzir afirmações negacionistas. Para os seguidores do arcebispo Marcel Lefebvre (1905-1991), conforme explica o historiador Luiz Edmundo de Souza Moraes, “todos os judeus são responsáveis pelo assassinato de Jesus e tramam contra a chegada do reino de Cristo”.


Para a extrema-direita, negar o Holocausto não é apenas um discurso de ódio aos judeus, mas também uma agenda de reabilitação dos fascismos nos planos político e partidário, que tem como um dos grandes entraves o genocídio dos judeus

No caso da extrema-direita, negar o Holocausto não é apenas um discurso de ódio aos judeus, mas também de uma agenda de reabilitação dos fascismos nos planos político e partidário, que tem como um dos grandes entraves o genocídio dos judeus. Desta forma, a viabilidade da restauração do fascismo como projeto político passa, necessariamente, pela negação: ou nega-se a existência de qualquer genocídio praticado pelos Estados fascistas na Segunda Guerra, ou nega-se que a morte em massa de judeus no período seja culpa desses Estados.

 

As formas de ação

O discurso negacionista assume muitas formas. No caso de pessoas como Ahmadinejad e Williamson, a negação do Holocausto manifesta-se, em geral, durante uma entrevista à imprensa, um sermão ou um discurso público. Já na extrema-direita, as estratégias são mais sofisticadas e articuladas. Trata-se de outro nível de produção de conteúdo, envolvendo fundação de editoras para comercializar livros, revistas e jornais; criação de produtoras de audiovisual para produzir e distribuir documentários; gerenciamento de redes sociais; organizações e institutos negacionistas mimetizando centros de pesquisa para, ao menos nas aparências, trazer legitimidade aos discursos e projeção social.

Embora críticos dos historiadores profissionais, os negacionistas da extrema-direita não menosprezam o meio acadêmico; e, justamente por reconhecerem o valor do discurso científico na sociedade, tentam simulá-lo em certos aspectos formais e, assim, reivindicar o seu lugar no debate historiográfico. Um exemplo é uma organização negacionista fundada nos Estados Unidos em 1978, o Institute For Historical Review, que tenta se parecer até no nome com um instituto acadêmico. Além disso, o IHR organiza palestras e faz publicações com formato e linguagem que lembram os trabalhos acadêmico-científicos.

O IHR, porém, falha na execução do projeto, já que conhecimento acadêmico não se define apenas por elementos de formato ou estéticos, mas também, e especialmente, por operações metodológicas, ética e normas científicas que orientam a área. O conteúdo negacionista do IHR não se baseia em pesquisas, ele ignora ou manipula a documentação, despreza o debate historiográfico e não passa pelo processo científico de produção do saber acadêmico. Ou seja, ignora os princípios básicos da pesquisa histórica.

O “R” do IHR (review) também é relevante para entender o fenômeno na extrema-direita. Os negacionistas não se autodenominam como tal, preferem o termo “revisionistas”. Tal autoqualificação não é fortuita. A comunidade acadêmica não tem dúvidas quanto ao fato de que toda historia está fadada inexoravelmente à eterna revisão. Pesquisadores estão sempre descobrindo documentos, lançando novas interpretações e levantando novos problemas. Assim, a História está sempre sendo revisitada e renovada. Houvesse tratados históricos inapeláveis, por que deveríamos, então, ter mais de um livro de História do Brasil? Bastaria um, e a questão estaria resolvida.

É por isso que os negacionistas reclamam para si o rótulo de “revisionistas”:  almejam dissimular a intenção que o termo “negacionista” já denuncia e, ao mesmo tempo, obter reconhecimento social como historiadores, uma vez que destes não se esperaria nada mais, nada menos do que “revisar” o passado. Seus textos, assim, apenas apresentariam “outra interpretação” do passado, ou ainda, um “outro lado da moeda” – instaurando tacitamente uma relação em pé de igualdade.

 

As estratégias de combate

O negacionismo tem muitos efeitos perniciosos. Em uma dimensão pessoal e comunitária, o discurso ofende a todos que sofreram no Holocausto, tanto mortos como sobreviventes e seus familiares, chamados de manipuladores e mentirosos. De forma mais ampla, o negacionismo é uma ameaça à verdade histórica porque nega um dos crimes mais hediondos de nosso tempo. Ao apagar esse crime, cria-se uma “cascata de negação”: nega-se a intolerância, a dominação pelo medo e a violência de que foram e são capazes os regimes autoritários e totalitários.

O apagamento do Holocausto também coloca em risco a afirmação dos direitos humanos, pois não diz respeito apenas ao povo judaico, mas a questões que afetam a humanidade, tais como dignidade, direito à vida, coexistência, alteridade e outros direitos básicos que devem ser assegurados por regimes democráticos.


A negação do Holocausto é a negação da própria História, uma vez que essa negação, operando no nível do silenciamento da memória e do fazer dos historiadores, abre precedente para outros negacionismos

Por fim, a negação do Holocausto é a negação da própria História, uma vez que essa negação, operando no nível do silenciamento da memória e do fazer dos historiadores, abre precedente para outros negacionismos, igualmente perniciosos: o ambiental, das ditaduras, da escravidão, da ciência e de outros genocídios. Por isso, historiadores e outras pessoas que se importam com os usos políticos do passado estão tão preocupadas com esse fenômeno.

Não existe, porém, consenso sobre a melhor forma de combater o negacionismo e os negacionistas. Alguns pesquisadores defendem que nunca se deve debater os temas negados com negacionistas, sob a pena de tratá-los como iguais e conferir, ainda que não intencionalmente, a legitimidade que eles tanto buscam: eles podem ser objetos de pesquisa, mas não são pares. Outros especialistas, contudo, dizem que o confronto é necessário, uma vez que o discurso de negação precisa ser desmontado explícita e publicamente.

Em alguns países da Europa, o código penal tem sido alterado para criminalizar aqueles que negam o Holocausto, impondo multas e, em alguns casos, até prisão, além de restrições à circulação social de textos com esse conteúdo. Mas no que pese o rigor jurídico nesses casos, nem todos estão convencidos de que a força da lei seja a mais indicada, já que pode alimentar a narrativa dos negacionistas como vítimas.

Eu entendo que todos aqueles que se sentem lesados em sua dignidade e honra por esses discursos têm o direito de procurar a Justiça. Porém, como educador e divulgador científico, não vejo o negacionismo apenas através da dimensão jurídica. O combate ao fenômeno passa, sobretudo, por um grande esforço educativo. O esforço contínuo de professores, pesquisadores, universidades, jornalistas, homens públicos, museus e movimentos sociais para produzir debates históricos de qualidade é a melhor forma de combate ao negacionismo do Holocausto e tantos outros, pois o que está em disputa não é meramente uma narrativa sobre o passado, mas uma forma de pensar sobre e com a História, de construção da alteridade como valor central de nosso mundo. Assim, não consigo imaginar uma forma realmente eficiente de erguer muros contra o recrudescimento do fascismo que não leve em consideração a importância da dimensão educacional no espaço público.

Bruno Leal Pastor de Carvalho

Departamento de História
Universidade de Brasília

Comentário (1)

  1. que horror foi o Holocausto , tomara que não aconteça de novo.

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