Renascimento da ciência psicodélica

O uso de substâncias com efeitos psicodélicos ocorre, provavelmente, há milhares de anos. Com a popularização desses compostos, no século 20, seu consumo se disseminou. Percebidas por muitos anos apenas como drogas de abuso, essas substâncias voltaram recentemente a ser estudadas. Mas é preciso acabar com o preconceito que as cerca e desburocratizar a pesquisa, de modo a definir com mais clareza seus riscos reais e seus possíveis benefícios para o tratamento de transtornos que causam sofrimento.

Substâncias com efeitos psicodélicos são consumidas em rituais místicos, religiosos e indígenas há, provavelmente, milhares de anos. No século 20, com a popularização dessas substâncias, seu consumo passou a ser mais disseminado.

Muitos compostos psicodélicos são encontrados na natureza, como a N,N-dimetiltriptamina (DMT), presente nas folhas da planta Psychotriaviridis, a psilocibina dos cogumelos do gênero Psilocybe, a mescalina, encontrada no cacto peiote (LophophoraWilliamsii), e a 5-metoxi-dimetiltriptamina (5-MeO-DMT), derivada da secreção produzida pelo sapo Bufo alvarius.

A dietilamida do ácido lisérgico (LSD) é o principal psicodélico de origem sintética. Construído a partir do ácido lisérgico proveniente do fungo Clavicepspurpurea, o LSD foi criado pelo químico suíço Albert Hofmann (1906-2008) em 1938. A psilocibina foi também isolada por Hofmann em 1958. A mescalina, usada em cerimônias na Igreja Nativa Americana (Native American Church), foi extraída do cacto peiote em 1989.


Embora diversas substâncias sejam capazes de promover alterações de percepção e consciência, para que um composto seja considerado um ‘psicodélico clássico’, ele deve ser capaz de se ligar e ativar um tipo especial de proteína no cérebro, um receptor para o neurotransmissor serotonina conhecido pela sigla 5-HT2A.

Acredita-se que a ativação do receptor 5HT2A em neurônios piramidais do córtex cerebral seja o fator responsável pelas distorções sensoriais, visões e fenômenos como expansão da consciência e dissolução do ego, todos eles associados à experiência psicodélica.

No Brasil, uma das principais formas de consumo de psicodélicos de ocorrência natural é a ingestão da Ayahuasca, um chá utilizado em rituais místico-religiosos por mais de 70 grupos indígenas da América do Sul e, desde 1930, por grupos religiosos, como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal. Os efeitos descritos após sua ingestão incluem as alterações na percepção, introspecção, visões (denominadas ‘mirações’) e aumento de memórias autobiográficas.

A bebida é preparada pela fervura do cipó Banisteriopsiscaapi com as folhas da P. viridis e ingerida na forma de chá. Embora o composto psicodélico dimetiltriptamina (DMT) seja proveniente das folhas usadas na mistura, os efeitos da Ayahuasca dependem da interação entre os dois ingredientes. Isso porque a DMT, se ingerida sozinha, é degradada no trato gastrointestinal. A ingestão concomitante de componentes presentes no cipó, os alcaloides de β-carbolinas (como a harmina e a harmalina), previne a degradação da DMT, que atinge a circulação e chega ao cérebro, promovendo os seus efeitos tão particulares.

Era pré-proibição (1950-1960)

Apesar da data de início do interesse terapêutico por psicodélicos não ser conhecida com precisão, os anos que sucederam à descrição das propriedades psicoativas do LSD por Albert Hofmann podem ser considerados o início da ciência psicodélica moderna. Na década de 1940, terapias medicamentosas em psiquiatria eram relativamente escassas e, após a descoberta de seus efeitos psicoativos em 1943, a possibilidade do uso do LSD e de outros compostos psicodélicos no auxílio de transtornos mentais começou a ser cogitado. Além disso, sugeria-se que o uso de LSD seria capaz de resgatar memórias reprimidas e outros elementos do inconsciente, o que poderia ser útil em psicoterapias.

Na década de 1950, o laboratório Sandoz sintetizou o LSD e o distribuiu sem custo para psiquiatras interessados em testar seus benefícios. Essa atitude fez crescer o número de pesquisas. Entre as décadas de 1950 e 1960, centenas de trabalhos científicos foram publicados.

Pesquisas preliminares com pacientes com formas de depressão e ansiedade sugeriam potenciais benefícios do LSD quando administrado durante sessões de psicoterapia assistida. Da mesma forma, estudos indicavam que a terapia com LSD poderia diminuir o consumo abusivo de álcool.

Cabe mencionar, entretanto, que as pesquisas com compostos psicodélicos em meados do século 20 eram passíveis de crítica por diversos motivos. Nesse período, não era realizada a comparação entre grupos de pacientes e grupos-controle (em que indivíduos que não recebem a substância também são analisados, permitindo a avaliação do efeito placebo); a medição da ‘melhora’ do quadro dos pacientes era feita a partir de critérios totalmente subjetivos; o tamanho da amostra (número de pacientes no estudo) era pequeno para determinação de um efeito robusto; e não havia uma avaliação matemática adequada (análise estatística) que possibilitasse a comparação entre resultados. Dessa forma, embora promissoras, tais pesquisas não avaliaram de modo conclusivo o potencial terapêutico dos compostos psicodélicos.

 

O impacto da proibição sobre a pesquisa


Próximo à década de 1990, trabalhos científicos com mescalina, psilocibina e DMT em humanos podem ser considerados como marco histórico do renascimento da pesquisa com psicodélicos.

A partir de meados do século 20, o uso não-científico das substâncias psicodélicas aumentou consideravelmente, sobretudo em virtude de sua associação ao movimento de contracultura norte-americano. Por motivação política, muito mais do que justificativa médica ou científica, em 1970, os Estados Unidos passaram a classificar LSD, psilocibina e mescalina na categoria mais restritiva de drogas de abuso, criminalizando sua posse e seu consumo e decretando-as como desprovidas de qualquer valor terapêutico – o que certamente não se baseava em evidências científicas. A decisão norte-americana influenciou o restante do mundo e, em pouco tempo, os compostos psicodélicos foram demonizados em vários países, criando-se barreiras políticas, sociais e culturais que inviabilizaram por décadas a pesquisa de suas propriedades terapêuticas.

Próximo à década de 1990, trabalhos científicos com mescalina, psilocibina e DMT em humanos podem ser considerados como marco histórico do renascimento da pesquisa com psicodélicos. De lá para cá, o desenvolvimento de técnicas mais sofisticadas para o estudo do efeito de substâncias psicodélicas em seres humanos,

animais e células, aliado ao crescente questionamento das políticas de drogas, fez com que vivenciássemos atualmente o chamado ‘Renascimento da ciência psicodélica’.

 

Estudos com células e animais

A identificação de alvos moleculares foi o primeiro passo para tentar desvendar os efeitos de substâncias psicodélicas sobre nossas células. O receptor intracelular sigma-1 mostrou-se importante na modulação da resposta inflamatória ativada por DMT e 5-MeO-DMT (um composto aparentado) tanto em células especializadas do sistema imunológico quanto em neurônios.

Utilizando organoides cerebrais humanos (modelo 3D onde se recapitula em laboratório o desenvolvimento do tecido cerebral), pesquisadores de nossa equipe demonstraram que 5-MeO-DMT é capaz de regular a expressão de diversas proteínas celulares. O composto psicodélico mexe com a expressão de proteínas que controlam inflamação, além de regular também aquelas envolvidas na formação de sinapses (a base da comunicação entre os neurônios). Estudo recente publicado por um grupo da Califórnia confirmou que a DMT e outros compostos psicodélicos interferem na reorganização das sinapses, aumentando a complexidade dos neurônios.

 

Pesquisas em humanos

A partir de meados da década de 2000, pesquisas científicas têm voltado a comprovar o papel terapêutico de compostos psicodélicos em humanos. Em 2006, pesquisadores da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, descreveram o efeito benéfico da psilocibina em pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo. Em 2014 e 2015, dois estudos realizados também nos Estados Unidos sugeriram que a administração de psilocibina seria eficaz também no tratamento da dependência por tabaco e álcool.

O efeito ansiolítico da psilocibina foi investigado ainda em pacientes com câncer. Cientistas da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, demonstraram que uma dose de psilocibina reduziu os sintomas de depressão e ansiedade por até seis meses. Outro estudo, publicado no mesmo ano, comparou o efeito de psilocibina com a niacina (vitamina B3, usada como controle). Os pacientes com câncer que receberam o composto psicodélico associado à psicoterapia apresentaram melhoras persistentes nos sintomas de ansiedade e depressão. A psilocibina também obteve resultados promissores para o tratamento de depressão em um estudo aberto – não controlado – realizado pelo Imperial College britânico.


Pesquisadores brasileiros têm destaque no estudo de psicodélicos, principalmente da Ayahuasca. Em um estudo não controlado, a Ayahuasca proporcionou melhora significativa em pacientes com depressão após a administração de uma única dose do chá, além da ativação de áreas do cérebro relacionadas à regulação de humor e emoções.

O efeito terapêutico do LSD foi investigado em um estudo com 12 pacientes que tinham ansiedade relacionada à presença de doenças crônicas ou risco de morte. Os participantes foram submetidos a sessões de psicoterapia frequentes e, em duas ocasiões, o LSD foi administrado. Os pacientes tratados com as doses mais altas apresentaram redução de ansiedade por até 12 meses. Nenhum efeito adverso severo foi relatado pelos pesquisadores que conduziram o estudo.

Mais recentemente, em um estudo de pesquisadores das universidades Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP), realizado com controle por placebo e com um maior número de pacientes, o efeito antidepressivo da Ayahuasca foi confirmado.

 

Uma longa jornada

É importante lembrar, porém, que os trabalhos descritos acima representam apenas o início de uma longa jornada de conhecimento até que substâncias psicodélicas voltem a ter papel na medicina. Os testes em células, organoides e animais representam, na maior parte das vezes, o primeiro passo para a descoberta dos mecanismos de ação. Os testes em humanos ocorrem em diferentes fases, quando segurança e eficácia são avaliadas. Vale apontar, ainda, que nem todas as pessoas poderiam

se beneficiar, já que, por exemplo, portadores de transtorno bipolar ou psicose podem ter o agravamento de seus sintomas com o uso de tais compostos.

Se, por um lado, as pesquisas com compostos psicodélicos estão caminhando a passos largos, por outro, os obstáculos não são poucos e incluem não apenas aqueles científicos, mas principalmente políticos e culturais. Percebidos por muitos anos apenas como drogas de abuso, há ainda o desafio de desconstruir o preconceito contra essas poderosas substâncias e desburocratizar a pesquisa. Isso permitiria maior celeridade não só em definir com maior clareza seus riscos reais, mas também qual o papel dos psicodélicos no arsenal terapêutico para o cuidado e a cura de determinados sofrimentos humanos.

Isis Moraes Ornelas
Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino

Luís Fernando Tófoli
Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria,
Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Estadual de Campinas

Karina Karmirian
José Alexandre Salerno
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino

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