Tem risco, mas na minha casa não

Moradores de comunidades vulneráveis a desastres naturais acreditam na segurança emocional e física de suas famílias, embora reconheçam o perigo que ameaça a região em seu entorno.

Com as fortes chuvas de verão atingindo o Sudeste brasileiro, há uma preocupação recorrente quanto à ocorrência de enchentes, alagamentos e movimentos de massa, também chamados de queda de barreira ou barranco, deslizamento, entre outros. Os movimentos de massa têm sido responsáveis pelas maiores tragédias relacionadas aos desastres naturais. Em 2011, registrou-se o maior deles no Brasil, afetando boa parte da região serrana fluminense, com um total de 947 mortes oficialmente divulgadas no Atlas Brasileiro de Desastres Naturais: 1991 a 2012, editado pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2013.Porém, contagens extraoficiais revelam números ainda mais alarmantes, levando em conta o quantitativo de moradias danificadas e de pessoas desaparecidas.


A população mais vulnerável acaba habitando os locais mais suscetíveis aos desastres naturais e, por necessidade, nega os riscos envolvidos. Na realidade, o risco passa a fazer parte de seus cotidianos.

Os movimentos de massa são fenômenos naturais que ocorrem quando blocos de rochas e solo se desprendem das encostas com a ação da gravidade, potencializados pelas chuvas volumosas. Inúmeros fatores podem levar à ocorrência desses movimentos, como a declividade da encosta, o tipo de solo, a drenagem e alterações na dinâmica natural, principalmente as decorrentes da ocupação humana.

Após 2011, ficou claro que o Brasil necessitava melhorar o sistema de prevenção e de alerta frente à ocorrência desses desastres. Uma das ações foi a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden). Além disso, os municípios desenvolveram estudos de risco e planos de ação em caso de desastres. Esses procedimentos são positivos,uma vez que auxiliam na gestão dos riscos em território nacional, objetivando minimizar as consequências.

Atualmente, os municípios da região serrana fluminense, assim como outras localidades no país, estão equipados com sirenes instaladas em comunidades de maior risco, enviam alertas por mensagens de celular em caso de uma possível ocorrência de movimento de massa, definem pontos de apoio e abrigo quando necessário, além de contarem com uma defesa civil capacitada. No entanto, porque ainda há tantas perdas de vidas humanas pela ocorrência desses fenômenos?

Negação do risco

A vulnerabilidade aqui é decisiva. Os mais carentes social e economicamente ocupam as áreas menos interessantes ao mercado imobiliário, muitas delas impróprias para esse fim. São construções em sua maioria com estruturas precárias, em ambientes insalubres, alagadiços ou alagáveis e em encostas íngremes. Dessa forma, a população mais vulnerável acaba habitando os locais mais suscetíveis aos desastres naturais e, por necessidade, nega os riscos envolvidos. Na realidade, o risco passa a fazer parte de seus cotidianos.

Inúmeras pesquisas buscam compreender a relação dessas comunidades com o ambiente de risco. Uma delas vem sendo conduzida pela primeira autora, e orientada pela segunda, no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. O foco é o estudo da comunidade do Amazonas, localizada no bairro Quitandinha, em Petrópolis (RJ). Essa região foi seriamente atingida em 2011, e ainda apresenta áreas apontadas como de muito alto, alto e médio riscos aos movimentos de massa. Entretanto,a comunidade continua a crescer em termos populacionais, com inúmeras ocupações inadequadas.

De acordo com a pesquisa, os moradores entrevistados apresentam visão ambígua relacionada ao problema. Por um lado, sabem da possibilidade de ocorrência dos movimentos de massa e que estes se relacionam com as fortes chuvas. Reconhecem que seus vizinhos podem ser gravemente afetados por esses fenômenos. Por outro lado, não se percebem dentro desse risco, negando a sua própria condição.

Problemas mais imediatos tomam conta das preocupações diárias da comunidade, como a dificuldade em pagar as contas, a saúde e a educação precárias, o abandono do poder público e, principalmente, a violência e o tráfico de drogas. Ao mesmo tempo, esses moradores não têm condições econômicas para morar em outro local com menor risco.

 

Medidas ineficazes

Apesar dos gastos públicos com a instalação e manutenção das sirenes de alerta, a definição dos pontos de apoio e abrigos e a atuação da defesa civil junto à comunidade, esse sistema tem se mostrado ineficiente para evitar a morte de pessoas por movimentos de massa. Quando as sirenes são acionadas, a população não tem comparecido aos pontos de apoio selecionados pela prefeitura como local de abrigo seguro até o perigo maior já ter passado.

A maioria dos entrevistados destaca que tal sistema é importante e conhece os procedimentos de evacuação de moradias; porém,os moradores não percebem que os riscos se aplicam a eles mesmos. A falta de segurança e o medo de serem obrigados a morar em abrigos também são fatores citados, o que os impede de buscar locais mais seguros em situações de maior perigo, além das crenças religiosas que minimizam a percepção do risco.

O que ficou claro é que há uma forte negação do perigo sobre si ou sobre a sua família. A moradia se constitui em ambiente de segurança, tanto emocional quanto física, mesmo que esta última seja ilusória. Ou seja, percebem que “tem risco, mas na minha casa não”.

A realidade de movimentos de massa é complexa; porém, o conhecimento científico, as tecnologias e as políticas públicas até então aplicadas não têm sido suficientes para a solução do problema. Fica evidente a necessidade de inclusão das comunidades no processo de gestão dos riscos.

O melhor caminho a seguir é atrair a população para o processo de tomada de decisão e para a construção de planos de gestão participativos, de modo que,  juntos, moradores, cientistas e órgãos públicos possam definir as melhores alternativas que, de fato, venham a auxiliar na preservação das vidas, para evitar que desastres como o de 2010 na Costa Verde, de 2011 e 2013 na região serrana fluminense e do verão de 2019 no Rio de Janeiro e em São Paulo voltem a ocorrer.

Cristiane Oliveira

Programa de Pós-graduação em Geografia, 
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Monika Richter

Programa de Pós-graduação em Geografia,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
e Instituto de Educação de Angra dos Reis,
Universidade Federal Fluminense

Seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Outros conteúdos desta edição

614_256 att-37149
614_256 att-37072
614_256 att-36589
614_256 att-36570
614_256 att-36555
614_256 att-36499
614_256 att-36482
614_256 att-36473
614_256 att-27650
614_256 att-36407
614_256 att-36397
614_256 att-36390
614_256 att-36375
coringa
614_256 att-36356

Outros conteúdos nesta categoria

725_480 att-86001
725_480 att-85578
725_480 att-85004
725_480 att-84761
725_480 att-84276
725_480 att-83829
725_480 att-83596
725_480 att-82941
725_480 att-82066
725_480 att-81484
725_480 att-80993
725_480 att-80500
725_480 att-79703
725_480 att-79088
725_480 att-78562