Do pensamento racial ao pensamento racional

Em 26 de junho de 2009, a Folha de S. Paulo, um dos maiores e mais importantes jornais do Brasil publicou na página de Saúde uma  reportagem com a chamada: “Negros fumantes têm cinco vezes mais risco de câncer – Pesquisa da Unicamp analisou 464 pessoas, 200 delas com câncer de pulmão – Hipótese é que mutação genética seja capaz de potencializar a ação dos componentes com potencial carcinogênico do cigarro”.

Levei enorme susto! Afinal, a Folha tem, ao longo dos anos, valorizado o emprego da racionalidade no dia a dia social e político e tem se oposto consistentemente a toda forma de preconceito e discriminação.

Por exemplo, quando foi publicado no finalzinho de 2002 o nosso trabalho – agora um clássico – sobre cor e ancestralidade em brasileiros, a Folha elogiosamente publicou um editorial – texto que, por definição, apresenta o ponto de vista do jornal ou da empresa jornalística sobre uma questão – no qual se afirmava:

“O que o trabalho de Parra e Pena faz é mostrar, com um bom nível de evidência, que as características que entendemos socialmente como “de negros” não guardam correlação estatística com a presença de genes inequivocamente africanos.[…] As evidências científicas de que a espécie humana é singular e de que não faz sentido falar em raças constituem apenas um aspecto da luta contra o racismo. O fenômeno é paradoxal: não há raças em nível genético, mas elas existem em nossas mentes, e isso basta para que ganhem concretude social, possibilitando manifestações espúrias como o racismo. Por vezes, os piores inimigos do homem são suas próprias fantasias.”
Bravo! Mas a reportagem de junho não se alinhava com essa postura. Intrigado, suspeitando que a mão esquerda da Folha talvez não estivesse sabendo o que a direita andava fazendo, fiz algo fora do meu estilo: enviei no mesmo dia por e-mail uma carta ao editor, com cópia para o ombudsman, dizendo:

“Senhor editor,
Estou escrevendo sobre o artigo “Negros fumantes têm cinco vezes mais risco de câncer”, que aceita e propaga a ideia errônea de que os negros constituem uma categoria biológica diferente dos brancos. A matéria ignora os muitos estudos científicos publicados pelo nosso grupo de pesquisa e outros, mostrando que no Brasil a correlação entre cor e ancestralidade genômica é tênue. É lamentável que um dos maiores jornais brasileiros publique algo tão cientificamente errado e socialmente preconceituoso.”

Observem que não entrei no mérito da pesquisa médica em tela, mas me concentrei na apresentação jornalística. De qualquer maneira, para meu dissabor, a carta foi completamente ignorada.

Pois bem, eu ainda estava cicatrizando minha ferida narcísica quando a Folha repetiu a dose em 10 de julho com a notícia “Negro morre mais de câncer de mama, próstata e ovário – Estudo acompanhou 19.457 afroamericanos e brancos que tiveram tratamento igual, sem variáveis socioeconômicas – Segundo especialistas, não é possível saber se a situação se repete entre brasileiros; no país, não foram feitas pesquisas do mesmo tipo”.

Decidi então escrever esta coluna para discutir o problema levantado pelos artigos da Folha.

O que significa ser “negro” no Brasil?
Para estabelecer uma base objetiva de conversa, devemos examinar o que pode ser chamado de “etnossemântica brasileira”. Primeiro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base em autodeclaração, usa apenas os termos branco, pardo e preto como categorias estruturais.

O que então vem a ser “negro” no Brasil? No seu livro Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica, Edward Telles explica que a expressão apareceu em documentos oficiais do Ministério da Justiça pela primeira vez em 1996, para englobar as categorias preta e parda do censo, aparentemente com a intenção de tentar convencer o órgão a mudar sua classificação. O IBGE resistiu com sucesso a essa ingerência.

O problema é que não faz nenhum sentido (exceto talvez um sentido político, que é um oximoro) tentar englobar pardos e pretos como uma única categoria de cor.

Primeiro, o próprio Telles, no mesmo livro, escreve o seguinte a respeito de “pardo”: “Esse termo […] também pode incluir outras categorias como os caboclos, isto é, indígenas aculturados ou pessoas com ascendência predominantemente indígena”.

A análise que fizemos da ancestralidade genômica de indivíduos não-aparentados do Rio de Janeiro mostra que não faz sentido englobar pretos e pardos como uma única categoria de cor.

Segundo, a questão é passível de análise científica. Em 2007, em colaboração com Guilherme Suarez-Kurtz, do Instituto Nacional do Câncer (Inca), fizemos um estudo de ancestralidade genômica de 336 indivíduos da cidade do Rio de Janeiro, dos quais 107 eram autoclassificados como brancos, 119 como pardos e 109 como pretos, segundo as categorias do IBGE. Os resultados estão na tabela ao lado.

Salta aos olhos que a ancestralidade africana dos indivíduos pardos (0,236) é intermediária entre a dos brancos (0,069) e pretos (0,509), estando de fato mais próxima dos primeiros do que dos últimos. Assim, pela análise desta amostra, não há qualquer fator que justifique a agregação proposta de pardos e pretos em negros.

O problema da biologização das diferenças humanas
A primeira classificação racial “científica” da humanidade foi feita pelo naturalista sueco Carl Linnaeus (1707-1778) na edição de 1767 do seu Systema Naturae (“Sistema da natureza” – ver figura abaixo). Linnaeus distinguiu quatro raças e qualificou-as de acordo com o que ele considerava serem as suas características principais:

Homo sapiens europaeus: Branco, sério, forte
Homo sapiens asiaticus: Amarelo, melancólico, avaro
Homo sapiens afer: Negro, impassível, preguiçoso
Homo sapiens americanus: Vermelho, mal-humorado, violento

Observem que Linnaeus atribuiu o status de subespécie às raças humanas, enfatizando a sua distinção biológica. É como se estivéssemos tratando de uma taxonomia “natural” da humanidade. Além disso, deu a elas uma associação de traços típica e fixa. Por exemplo, realmente havia a expectativa de todos os europeus serem “brancos, sérios e fortes”.

A equivocada biologização das diferenças “raciais” foi disseminada e aceita, ao ponto de alguns naturalistas do século 19 proporem até que as raças humanas eram, na realidade, espécies diferentes! Entre eles, destaca-se Ernst Haeckel (1834 -1919), um famoso e influente biólogo evolucionista alemão abordado em uma coluna anterior.

Na perspectiva essencialista ou tipológica, a raça é vista como um elemento inerente e fundamental que define holisticamente a pessoa. Nesse paradigma, o indivíduo não pode simplesmente ter a pele mais ou menos pigmentada, ou o cabelo mais ou menos crespo – ele tem de ser definido como “negro” ou “branco”, rótulo determinante de sua identidade. A pigmentação da pele e outras características superficiais, em vez de serem corretamente percebidas como pouco relevantes, sinalizam profundas diferenças entre as pessoas.

Esse tipo de associação fixa entre características físicas e psicológicas absolutamente não faz sentido do ponto de vista genético e biológico! O genoma humano tem cerca de 20 mil genes e sabemos que poucas dúzias deles controlam a pigmentação da pele e a aparência física dos humanos. Está 100% estabelecido que esses genes não têm influência sobre qualquer traço comportamental, intelectual ou físico, incluindo a predisposição a câncer de pulmão ou qualquer outro câncer.

A humanidade moderna emergiu uma única vez, na África, há menos de 200 mil anos. Assim, a história evolucionária humana é bem curta e a distribuição mundial de características genéticas é principalmente devida à dispersão, com um papel importante de deriva genética por efeitos fundadores sucessivos e seleção por adaptação a ambientes geográficos. Basicamente, a diversidade genética observável na Europa, Ásia, Oceania e nas Américas é meramente um subconjunto da variação encontrada na África.

Capa do livro recém-lançado Uma gota de sangue – história do pensamento racial, do sociólogo Demétrio Magnoli.

Como bem disse o geneticista sueco Svante Pääbo, em uma perspectiva genômica somos todos africanos, morando na África ou em exílio recente de lá. Europeus são genealogicamente derivados de africanos e não há diferenças biológicas entre eles. Seja por que motivo for, tratá-los como sendo de espécies, subespécies ou “raças” diferentes é contribuir para racismo e discriminação!

Há poucos dias chegou às livrarias o brilhante livro do Uma gota de sangue – história do pensamento racial, do sociólogo Demétrio Magnoli. Com argumentação histórica e sociológica que complementam os argumentos científicos que abordei no meu livro Humanidade sem raças?, a obra desconstrói as crenças em raças e na eficácia das cotas raciais. Recomendo sua leitura a todos.

Deve ser tomado um infinito cuidado para evitar afirmativas desastrosas e errôneas sobre a cor e ancestralidade do brasileiro pelo perigo de reavivar ideias agora defuntas que, no passado, ajudaram a estabelecer e propagar teorias racistas. Vamos acrescentar duas letras ao pensamento racial e transformá-lo de uma vez por todas em pensamento racional! 


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
11/09/2009