Números para entender a natureza

Falta água nas torneiras em São Paulo. Ao mesmo tempo, a cidade enfrenta situações de alagamento. Paradoxo? Nenhum. Uma melhor compreensão da dinâmica das águas na região poderia explicar essa aparente controvérsia se, é claro, o leitor fala a linguagem utilizada em tais pesquisas: a matemática.

Quem estudou o clima apenas de forma superficial nos tempos de escola talvez tenha dificuldade de relacionar as disciplinas envolvidas, mas os especialistas em temas como este precisam de muita familiaridade com números. Afinal, é por meio de modelos numéricos que somos capazes de tentar prever fenômenos naturais desastrosos, incluindo secas, inundações, deslizamentos e muitos outros.

Tomemos como exemplo a situação de seca em São Paulo e a já famosa crise hídrica no Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de água para a maior parte da região metropolitana paulista. O volume de água do sistema, cujo nível abaixo do esperado vem sendo anunciado há meses pela mídia, não depende apenas da quantidade de chuva da região: mesmo a água que cai em locais distantes pode contribuir hidrologicamente para a Cantareira, desde que esta esteja na mesma bacia hidrográfica e à montante do ponto de análise, isto é, localizada “acima” do ponto em que mediremos o nível da água – pois o líquido, por ação da gravidade, irá descer até lá.

Geoprocessamento é um recurso fundamental na pesquisa em desastres naturais, que envolve a coleta e análise de dados espaciais sobre uma determinada situação

No estudo de como ficará o abastecimento do Sistema Cantareira nos próximos meses, a matemática tem um papel de destaque, a começar pelo que chamamos de geoprocessamento, um recurso fundamental na pesquisa em desastres naturais, que envolve a coleta e análise de dados espaciais sobre uma determinada situação. Para representar esses dados em um computador, são utilizadas ferramentas da matemática, especialmente da geometria e álgebra de matrizes – desde operações simples, como interseção de linhas (rios) com polígonos (áreas urbanas), e também processos mais complexos, como a análise de mapas de altimetria (imagens de satélite que, no computador, são representadas por matrizes). O famoso cálculo diferencial e integral tem aplicações, por exemplo, na quantificação e representação de comprimentos, áreas e superfícies, e na resolução das equações que determinam o comportamento atmosférico e oceânico num futuro próximo.

Em nosso caso específico, a etapa de geoprocessamento delimita a região de contribuição hidrológica do Sistema Cantareira, ou seja, a área abrangida pela bacia hidrográfica, que pode relacionar diferentes municípios. Para promover o monitoramento e possibilitar a emissão de alertas a um município X, muitas vezes é preciso instalar equipamentos – como o pluviômetro, capaz de medir o volume de chuva do local – não exatamente no município que se deseja alertar, mas em um município Y, com Y à montante de X. Desta forma, é possível, como alguma antecedência, estimar qual o volume de água que poderá chegar em X.

O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) delimitou bacias hidrográficas à montante de diversas áreas de risco de inundação de vários municípios brasileiros, incluindo São Paulo. Com base em tal geometria, é possível promover o monitoramento e emitir, quando necessário, alertas. Esse conhecimento é importante também para estimar potenciais impactos de desastres naturais em diferentes setores, como habitação, saúde e transporte – por exemplo, saber o tamanho (área) da bacia à montante de uma estrada é importante para o dimensionamento do seu sistema de drenagem (bueiros e galerias).

Linguagem da natureza

A matemática pode ser considerada, em resumo, como a linguagem que usamos para entender a natureza e seus impactos sobre o homem

A matemática pode ser considerada, em resumo, como a linguagem que usamos para entender a natureza e seus impactos sobre o homem. Outro exemplo: no Brasil, os grandes desastres naturais são frutos do excesso ou da falta de chuva, e a matemática nos ajuda a compreender o comportamento da atmosfera, que rege esta dinâmica. Para estudá-la, podemos considerar a atmosfera como um “sistema dinâmico, não linear, caótico e complexo”, com diversos graus de interação com o oceano e a biosfera.

Trocando em miúdos, um sistema dinâmico é, basicamente, um conjunto de fatores que podem variar com o tempo. As conexões entre as diferentes regiões, ligadas pela atmosfera, relacionam, por exemplo, a crise hídrica da região sudeste com as intensas chuvas na região do oeste da Amazônia, que aumentaram o nível dos rios e provocaram, em 2014 e 2015, inundações nos estados do Acre e Rondônia

Participação especial num evento de matemáticos

Estas e outras pesquisas foram apresentadas na última semana de julho, durante o Colóquio Brasileiro de Matemática, realizado no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro. A cada edição, o evento se abre à participação de pesquisadores de outras áreas para a realização de sessões temáticas. Foi o que fizemos: na sessão “Desastres Naturais: a presença da matemática – da compreensão à prevenção”, convidamos uma série de especialistas na área de desastres naturais para falar sobre como a matemática faz parte de suas pesquisas. Com isso, um de nossos objetivos era identificar jovens graduandos e pós-graduandos em matemática e áreas afins com interesse na temática de desastres naturais e iniciar uma rede multi-institucional de pesquisadores.

Colóqui Brasileiro de Matemática
Leonardo Santos e José Marengo, pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, organizaram a sessão temática no Colóquio Brasileiro de Matemática. (foto: Acervo pessoal / Leonardo Santos)

Entre os temas abordados estiveram, além da distribuição de chuvas e abastecimento de bacias hidrográficas, o uso da geoestatística para planejamento amostral e possibilidades na análise da expansão da rede observacional nacional (pluviômetros, estações hidrológicas, radares meteorológicos etc); o uso do geoprocessamento para estimar impactos dos desastres naturais na infraestrutura de transportes e outros aspectos da vida urbana, incluindo a expansão de doenças infecciosas; o gerenciamento de riscos relacionados aos desastres naturais; o uso de big data para detectar eventos extremos; entre outros. O conteúdo das apresentações, incluindo vídeos das palestras, estará, em breve, disponível na página do Impa.

Leonardo B. L. Santos
José A. Marengo

Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden)