Registrar a trajetória da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida, a partir do entrecruzamento com a trajetória pessoal de seu fundador, foi o desafio de Plínio Fraga e Ana Redig no livro Cidadania: a fome das fomes, lançado pela Mórula Editorial por ocasião da comemoração dos 30 anos dessa organização não governamental.
No início do livro, os autores escrevem que “a fome da cidadania é a fome das fomes”, o que denota as intenções e ações da instituição desde sua criação, em 24 de abril de 1993: não bastava apenas alimentar os homens e mulheres, mas também lhes dar meios para adquirir autonomia, cultura e orgulho. Hoje, sob a liderança de Kiko Afonso e Daniel Souza, filhos dos fundadores do Ibase – e também, por que não, filhos do exílio –, a Ação da Cidadania busca refletir sobre o próprio passado em busca de apontamentos para a conjuntura que se aproxima nos próximos anos.
Dividido em duas partes, o livro privilegia inicialmente a brilhante trajetória de Herbert de Souza, e destaca os fatos ocorridos entre 2018 e 2023, em um contexto de profundas transformações na vida política brasileira, quando, nos governos de Michel Temer (2018-2018) e Jair Bolsonaro (2018-2022), houve um profundo desmonte das estruturas oficiais de combate à fome.
A segunda parte é mais interessante para quem busca um olhar retrospectivo sobre a Ação da Cidadania, privilegiando a história institucional, as campanhas e o desenvolvimento das instalações e programas liderados pela ONG, além das atividades culturais e sociais coordenadas pelos comitês locais. Nessa seção, textos elaborados por ocasião da celebração dos 20 e dos 25 anos da entidade foram reescritos com o objetivo de reforçar a importância e o protagonismo de medidas como o ‘Natal sem fome’, que tiveram ampla adesão da sociedade civil, de cantores e atores, com um forte apoio da imprensa.
Com um riquíssimo material iconográfico, o livro também traz os cartazes e propagandas das campanhas mobilizadas pela ONG desde 1993. Na formulação dessas peças publicitárias, alimentação e cidadania constituíram elementos inseparáveis.
O lançamento de Cidadania: a fome das fomes evidencia não apenas a importância dos 30 anos da Ação da Cidadania, mas também ajuda a ressaltar dois fatos marcantes: em 2023, completaram-se 50 anos da morte de Josué de Castro, médico nutrólogo que serviu de inspiração para Herbert de Souza e para todos que se dedicam à luta contra a fome. Segundo ele, a fome é um assunto incômodo, e suas resoluções, como a reforma agrária, também são incômodas para grande parte do poder vigente. Nesse sentido, a piora nos índices de insegurança alimentar iniciada em 2016 e intensificada com a pandemia de Covid-19 nos lembra que a fome é, no limite, uma escolha política. Por fim, 2023 também foi o ano em que faleceu outro protagonista da história do combate à fome no Brasil: o já citado bispo Dom Mauro Morelli.
Se os fatos recentes demonstram que a história não ensina lições, pois genocídios, guerras e negacionismos continuam acontecendo exaustivamente mundo afora, eles também reforçam a ideia da história como uma disciplina incômoda, que expõe as contradições e fraturas dos sistemas políticos e econômicos. Por meio de seu estudo, é possível, quem sabe, tentar compreender como, em um mundo cada vez mais mecanizado e que bate recordes de produção agrícola ano a ano, pessoas ainda morram de fome.