Pessoas negligenciadas

O tema da mesa-redonda era doenças negligenciadas em saúde mental, mas as discussões apontaram uma forma diferente de ver o problema: seriam mesmo as doenças as vítimas do descaso? Para o psiquiatra Leonardo Caixeta, da Universidade Federal de Goiás, o abandono dirige-se, na verdade, a grupos sociais específicos – mais precisamente idosos, índios e moradores de rua – preteridos pela saúde pública e pela população de modo geral.

Quando veem uma mendiga se banhando no rio Tietê, acham graça

“No Brasil, temos uma tolerância exagerada para conviver com doenças mentais, sobretudo quando elas não matam”, criticou Caixeta na mesa realizada no segundo dia (12/7) da 63ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

“Quando veem uma mendiga se banhando no rio Tietê, acham graça; quando uma pessoa idosa começa a esquecer coisas, acham normal – isso não é experimentado na família como algo que atrapalha a vida da pessoa mais velha”, acrescentou o psiquiatra.

Na avaliação de Caixeta, não há atualmente grupo mais negligenciado que os índios. “Há enorme incidência de alcoolismo, suicídio, vício em drogas nessa população, que mal é estudada”, alertou o psiquiatra, ratificando de modo assertivo: “A nova tuberculose indígena tem nome, chama-se alcoolismo, e ninguém quer tratar”.

Doenças ‘curiosas’

Caixeta também diz que há doenças que são vistas não como uma patologia, mas como ‘causos curiosos’. Estas não são associadas diretamente a grupos excluídos de representatividade social – como idosos, índios e moradores de rua. A característica comum a elas é a forma escolhida pela população para classificá-las: de modo folclórico ou anedótico.

Leonardo Caixeta
Leonardo Caixeta ouve pergunta da plateia, que, em certos momentos, ficou incomodada com a contundência das opiniões do psiquiatra. (foto: Thiago Camelo)

O psiquiatra cita como exemplo a síndrome de Diógenes. A doença é chamada assim em alusão ao filósofo grego homônimo, que foi abandonando a vida material e passou a comportar-se, sob olhares de alguns, como um animal. Quem tem a síndrome tende a isolar-se, descuidar-se fisicamente e, também, colecionar objetos.

Leonardo Caixeta conheceu um casal de idosos que acumulou uma quantidade de lixo que caberia em 50 caminhões de limpeza. O homem do casal, que apareceu até na televisão, chegou a ser seu paciente.

“Esse senhor foi motivo de piada nas ruas, foi maltratado; as pessoas tratam isso como algo engraçado, curioso, e não como uma doença mental, o que de fato é”, retrata Caixeta. Ele afirma ainda que a síndrome de Diógenes é bastante comum em pacientes de idade avançada, o que poderia explicar também o pouco caso com a doença do casal.

Distúrbios nacionais

“Por que ‘importamos’ diagnósticos estrangeiros e não estudamos as doenças mentais que acontecem no país?”, questiona o psiquiatra. “Há algumas síndromes que merecem mais atenção, como a síndrome do Jeca Tatu.”

Jeca Tatu?!

Segundo Caixeta, é uma homenagem que fez a Monteiro Lobato e a seu famoso personagem, um trabalhador rural indolente e preguiçoso. Para o psiquiatra, é possível que trabalhadores e moradores do campo com as características de Jeca Tatu – folclóricas e estereotipadas, importante lembrar – tenham alguma doença similar à neurastenia, cujos sintomas são exaustão física e psicológica, muitas vezes confundida com a preguiça.

“Há algumas síndromes que merecem mais atenção, como a síndrome do Jeca Tatu”

“Talvez a apatia dessas pessoas, essa pecha de preguiçoso e apático atribuída a baianos, índios, trabalhadores rurais, tenha a ver com características do clima, do tempo quente da região”, defende o psiquiatra, que avisa: a próxima edição da Revista Brasileira de Psiquiatria contará com um artigo seu sobre a síndrome do Jeca Tatu.

Caixeta diz que, além dessa idiossincrática síndrome por ele anunciada, diversas cidades do Brasil  – e de outros países da América Latina com alta taxa de analfabetismo – mostram uma incidência de pessoas com demência maior do que a média mundial. A explicação: supõe-se uma relação entre o problema social (analfabetismo) e o mental (demência). Ler, de certo modo, criaria uma ‘reserva cognitiva’ que ajudaria a retardar os primeiros sintomas da doença.

“Todas esses exemplos que dei falam de pessoas negligenciadas de uma forma ou de outra, seja porque fazem parte de um grupo com pouca representatividade social, como os mendigos, os idosos e os índios, seja porque têm doenças pouco reconhecidas nas regiões em que vivem”, diz Caixeta.

E, criticamente, reconhece: “O sistema de saúde brasileiro não está preparado para lidar com essas doenças”.

Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line

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