Tempestades, enchentes e embriões: um drama pré-histórico

– Xiaolin, que descoberta espetacular! Você tem que procurar ovos, quem sabe até ninhos de pterossauros nessa região!

Esta foi a minha exclamação para meu colega de mais de uma década, Xiaolin Wang, pesquisador do Institute for Vertebrate Paleontology and Paleoanthropology (IVPP), na China, quando ele me apresentou um achado surpreendente.

Desde 2004, tenho desenvolvido uma parceria com pesquisadores do IVPP, tendo à frente o Dr. Wang. O IVPP é certamente uma das principais instituições de pesquisa de fósseis de vertebrados no mundo e seus pesquisadores vêm realizando inúmeras descobertas de destaque.

As palavras que abrem esta coluna foram proferidas quando Xiaolin me mostrou uma rocha com cerca de 1,5 metros de comprimento que estava coberta por um pano de seda verde em seu escritório, em 2008. Ali havia três crânios de pterossauros e evidências da presença de pelo menos quatro indivíduos, um achado fascinante que entusiasma qualquer paleontólogo.

– Ano que vem, meu amigo, ano que vem! – dizia Xiaolin quando eu indagava quando poderíamos estudar aquele material. Ele queria continuar as escavações, pois, além daquela peça, havia na região camadas com centenas de ossos. Todos eram procedentes do deserto de Hami, que faz parte do famoso deserto de Gobi. A idade das rochas naquela região não é sabida ao certo, mas comparações geológicas com outras áreas sugerem que elas se formaram durante o Cretáceo, há 120 milhões de anos.

Deserto de Hami, na China, onde dezenas de ossos e ovos de pterossauros foram encontrados. (foto: Alexander Kellner)

Tempos depois, a equipe do meu colega chinês encontrou os primeiros ovos na região, que estavam preservados em três dimensões! Era, novamente, algo fantástico, que foi capa de uma importante revista científica e revelou uma nova espécie para a ciência: Hamipterus tianshanensis! Mas nada me preparou para o achado feito alguns anos depois…

 

Animais enigmáticos

Reconstrução de ovos de pterossauros e um embrião ao nascer. (arte: Maurílio Oliveira)

De forma resumida, os pterossauros estão entre as espécies mais enigmáticas que já viveram no nosso planeta. Muitas vezes confundidos com dinossauros, esses répteis voadores trilharam o seu caminho evolutivo de modo independente: alçaram o voo aproximadamente 225 milhões anos atrás e se extinguiram há 66 milhões de anos, na grande extinção em massa ocorrida no final do período geológico chamado Cretáceo. Por não terem deixado descendentes e por serem muito diferentes de tudo que existe nos dias de hoje, pairam sobre esses vertebrados muitas dúvidas, entre elas, o modo como viviam e quais eram as suas estratégias reprodutivas. Praticamente não sabemos nada sobre seu comportamento.

Em nova viagem à China, Xiaolin me levou a uma pequena casa que fora alugada pelo IVPP em um bairro afastado de Pequim. Os meus colegas chineses têm coletado tantos fósseis que estes não cabem mais na sede principal do instituto. Chegando lá, ele me mostrou um bloco de rocha de 3,28 m2 que estava sendo preparado. Lembro-me bem de quando o vi pela primeira vez: havia dezenas de ossos, incluindo crânios! Mas essa não era a melhor parte: também havia ovos! Muitos ovos!De forma resumida, os pterossauros estão entre as espécies mais enigmáticas que já viveram no nosso planeta. Muitas vezes confundidos com dinossauros, esses répteis voadores trilharam o seu caminho evolutivo de modo independente: alçaram o voo aproximadamente 225 milhões anos atrás e se extinguiram há 66 milhões de anos, na grande extinção em massa ocorrida no final do período geológico chamado Cretáceo. Por não terem deixado descendentes e por serem muito diferentes de tudo que existe nos dias de hoje, pairam sobre esses vertebrados muitas dúvidas, entre elas, o modo como viviam e quais eram as suas estratégias reprodutivas. Praticamente não sabemos nada sobre seu comportamento.

Acho que todos podem imaginar o meu coração disparando –  era algo que nunca imaginei poder existir. Até aquela data, havia três  ovos de pterossauros conhecidos no mundo – dois da China e um da Argentina! Na publicação de 2014, adicionamos mais cinco que foram encontrados em Hami. E ali estavam dezenas de ovos acumulados em uma área muito pequena!

Os ovos de pterossauros são diferentes dos ovos de dinossauros: em vez de terem uma casca externa dura, mineralizada, eles possuem uma casca ‘mole’, formada por uma fina camada de carbonato de cálcio e uma membrana. Esse tipo de ovo é muito comum em lagartos e cobras e se diferencia dos ovos de aves. Em vez de quebrar, esses ovos deformam. Não é preciso enfatizar a sua fragilidade e raridade.


Dois ovos de pterossauros. Note que ambos estão deformados, demonstrando que a casca não era totalmente mineralizada, mas sim predominantemente formada por uma membrana. (foto: Alexander Kellner)

Talvez o leitor possa imaginar a pergunta que estava no ar: se havia tantos ovos, será que alguns não poderiam conter embriões? Claro que Xiaolin já pensava nisso.

Quando a preparação terminou, 215 ovos foram revelados, sendo que uma estimativa indicava que, naquele mesmo bloco, o número real deveria passar de 300. Muitos ainda estavam escondidos na rocha.A preparação daquele bloco prosseguiu por um bom tempo. Embriões acabaram sendo achados – um total de 16, os primeiros de pterossauros preservados em três dimensões.

 

Fatos inéditos da vida dos pterossauros


Embrião de pterossauro dentro de ovo. (foto: Alexander Kellner)

Nós aprendemos muito com esse achado. Por exemplo, os ovos estavam amontoados, o que demonstrava que eles foram removidos do local onde haviam sido postos. A grande quantidade claramente indica que mais de uma fêmea estava envolvida na postura. Assim, estava claro que o novo achado reforçava a ideia de que pterossauros viviam em bandos, além de demonstrar que pelo menos em uma espécie, o Hamipterus tianshanensis, as fêmeas se juntavam em colônias de nidificação para por os seus ovos.

Com relação aos embriões, análises de tomografia computadorizada demonstraram que, nos indivíduos que estavam prestes a nascer, os ossos vinculados ao voo (braços e cintura escapular) ainda não estavam bem ossificados, ao contrário dos ossos das pernas. Essa observação sugere que os recém-nascidos podiam caminhar, mas não voar. Assim, os pais tinham que cuidar da sua prole por algum tempo após o nascimento, algo que não se sabia anteriormente.

Outro aspecto importante da descoberta foi constatar que havia oito níveis de ossos em uma seção com 2,2 metros de altura, cada um representando um tempo distinto. Em quatro desses níveis, foram encontrados ovos. Isso indica que as fêmeas de Hamipterus tianshanensis voltavam sazonalmente para uma mesma região para a postura de seus ovos.

Porém, um dos mais intrigantes aspectos para mim e meus colegas paleontólogos era entender por que naquela região havia tamanha concentração de ovos extremamente frágeis e difíceis de serem preservados. Não existe outro lugar onde se encontrou essa quantidade de ovos concentrados em um determinado ponto – nem mesmo de dinossauros, que possuem uma casca externa mineralizada e são mais resistentes.


Dezenas de ossos de pterossauros. (foto: Alexander Kellner)

Apesar de ainda serem necessários estudos mais detalhados, nós conseguimos, por meio de dados geológicos, chegar a uma hipótese. Essa excepcional concentração de fósseis, incluindo ovos e embriões, se deve a uma combinação inusitada de fatores. Tempestades de grande porte ocasionaram chuvas torrenciais em uma região de nidificação de pterossauros. Esse grande acúmulo de água fez com que os rios da região transbordassem, arrancassem os ovos postos por diversos pterossauros nas margens e os transportassem por um curto trajeto para locais onde foram soterrados rapidamente.

Essa inusitada combinação de fatores – chuvas torrenciais provocando inundações em áreas de nidificação – se repetia de tempos em tempos, formando camadas de concentração de ossos e ovos. Foram essas condições excepcionais que transformaram a região de Hami em uma das mais promissoras para a pesquisa de pterossauros encontradas na última década.

Esse estudo, publicado na Science, tem outra marca: são quase 15 anos de pesquisa sino-brasileira que resultaram em inúmeras descobertas – e outras estão para serem feitas.

Por último, gostaria de mencionar que réplicas de algumas peças que integram esse estudo estão em exposição no Museu Nacional/UFRJ, que em 2018 completa o seu bicentenário! E, por falar nisso, essa importante data para a ciência brasileira será o tema da Imperatriz Leopoldinense no próximo carnaval. Como está o seu samba no pé?

 

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

 

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
(clique nos links para mais detalhes)

O Museu Nacional/UFRJ fará 200 anos em 2018! Ele é a instituição científica mais antiga da América do Sul e será o enredo da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, do Rio de Janeiro, para o carnaval do ano que vem. ‘Uma noite real no Museu Nacional’ tem como objetivo resgatar a história que transcende a do museu, mas está diretamente vinculada com o surgimento do nosso país. Clique aqui para ouvir o samba.

Caleb Brown (Royal Tyrrel Museum of Paleontology, Canadá) descreveu placas osteodérmicas excepcionalmente bem preservadas de um dinossauro pertencente ao grupo dos anquilossauros. Esse grupo de dinossauros possui projeções em diversas partes do seu corpo, em particular a espécie Borealpelta markmitchelli. Brown realizou estudos detalhados dessas projeções em artigo publicado na PeerJ.

Está em plena organização o VIII Simpósio Nacional de Ensino e História de Ciências da Terra. O evento ocorrerá em Campinas (SP) de 22 a 27 de julho de 2018. Participe!

Stephen Brusatte (Universidade de Edinburgh, Inglaterra) e colegas acabam de publicar nos Anais da Academia Brasileira de Ciências um estudo sobre os últimos dinossauros não-avianos. Os autores chegaram à conclusão de que essas formas estavam se diversificando, ocupando importantes posições dentro dos ecossistemas, antes de sua extinção no limite K-Pg.

Um novo besouro fóssil de Mianmar acaba de ser descrito por Andrei Legalov (Russian Academy of Sciences). Publicado na Cretaceous Research, o estudo aumenta a diversidade da fauna de insetos desse depósito, que tem fornecido uma impressionante quantidade de material.

Uma pesquisa coordenada por Joaquin Moratalla (Museo Geominero, Espanha) acaba de revelar novas pegadas de dinossauros terópodes no depósito paleontológico de Las Hoyas (Cretáceo Inferior), na Espanha. Publicada na Palaentologia Electronika, essa ocorrência é relativamente rara e, segundo os autores, revela um dinossauro carnívoro “trotando” em uma região de águas bastante rasas.